A Adulteração dos Conceitos de Marx
Publicado na Revista Marxismo e Autogestão:
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MARX, MARXISMO,
MARXISTAS
A Adulteração dos Conceitos de Marx
Erich Fromm
Erich Fromm comenta aqui as deturpações das ideias de Marx
efetivadas pelos meios oligopolistas de comunicação, professores, indivíduos em geral. Ele não aponta para uma análise do pseudomarxismo,
tal como esboçará posteriormente. A preocupação básica de Fromm é com a emancipação humana através da síntese que ele busca
efetivar entre marxismo e psicanálise. No entanto, algumas
ressalvas precisam ser feitas ao seu projeto, especialmente sua interpretação do marxismo que
desconsidera questões fundamentais como a luta de classes (que algumas vezes
aparece, mas de forma secundarizada) e falta de uma compreensão da dinâmica do modo de produção capitalista. O presente
texto, impulsionado pelo entusiasmo com a obra Manuscritos de Paris, de
Karl Marx e o tema da alienação (o presente texto é um capítulo do livro O
Conceito Marxista do Homem, que tem os Manuscritos como anexo),
significa uma superação do equívoco interpretativo que o
próprio
Fromm apresentou em Psicanálise da Sociedade
Contemporânea. A obra também efetiva uma crítica de elementos do
capitalismo da época, sob o regime de acumulação conjugado, momento no
qual a burocratização se amplia e é naturalizada, e as
ideologias apontam para a reprodução e impossibilidade de
mudança, de acordo com o paradigma reprodutivista. O capitalismo
atual, no entanto, devido às lutas radicalizadas do movimento operário e estudantil do final
dos anos 1960, se apropriou das críticas e substituiu o
paradigma reprodutivista pelo subjetivista e se tornou moda “valorar o indivíduo”, a “subjetividade”, etc. Fromm não só combate as deformações do pensamento de Marx,
como elementos do paradigma hegemônico e características do capitalismo
oligopolista transnacional.
Uma das estranhas ironias da História é não haver limites
para os erros de interpretação e as deturpações das teorias, mesmo numa época
de acesso irrestrito às fontes; não há exemplo mais drástico desse fenômeno do
que o acontecido com a teoria de Karl Marx nos últimos decênios. São constantes
as referências a Marx e ao marxismo na imprensa, nos discursos de políticos, em
livros e artigos escritos por respeitáveis cientistas sociais e filósofos; no
entanto, com poucas exceções, parece que os jornalistas e políticos jamais
viram sequer de relance uma linha escrita por Marx e que os cientistas sociais
se satisfazem com um mínimo de conhecimento da obra dele. Aparentemente
sentem-se a salvo em seu papel de peritos no assunto, visto como ninguém com
poder e status no campo da pesquisa social contesta suas afirmações
ignaras.
Dentre todas as incompreensões existentes, provavelmente a
mais disseminada é a ideia sobre o “materialismo” de Marx. Alega-se ter sido
opinião de Marx que a suprema motivação psicológica do homem é seu desejo de
vantagem monetária e conforto, e que este anelo pelo lucro máximo constitui o
principal incentivo em sua vida pessoal e na vida da espécie humana.
complementando essa ideia, há a suposição igualmente difundida de ter Marx
negligenciado o valor do indivíduo; dele não ter respeito nem compreensão das
necessidades espirituais do homem, e de ter sido seu “ideal” a pessoa bem
nutrida e bem vestida, porém, “sem alma”. Sustentou-se que as críticas feitas
por Marx à religião equivaliam à negação de todos os valores espirituais, e
isso pareceu bem mais evidente aos que julgam ser a crença em Deus a base de
qualquer orientação espiritual.
Esta opinião acerca de Marx prossegue para examinar seu
paraíso socialista como um lugar onde milhões de pessoas se submetem a uma
burocracia estatal todo-poderosa, pessoas que renunciaram à sua liberdade,
ainda que possam ter alcançado a igualdade, esses “indivíduos” materialmente
satisfeitos perderam sua individualidade e foram devidamente transformados em
milhões de robôs e autômatos uniformes, dirigidos por uma pequena elite de
líderes mais bem alimentados.
Basta dizer, desde logo, que esta imagem popular do
“materialismo” de Marx – sua tendência antiespiritual, seu desejo de
uniformidade e subordinação – é inteiramente falsa. A meta de Marx era a
emancipação espiritual do homem, sua libertação dos grilhões do determinismo
econômico, sua reintegração como ser humano, sua aptidão para encontrar unidade
e harmonia com seus semelhantes e com a natureza. a filosofia de Marx foi, em
linguagem secular, não-deísta, um novo e radical passo à frente na tradição do
messianismo profético; ela visava à plena realização da individualidade,
exatamente o objetivo que presidiu o pensamento ocidental desde o Renascimento
e a Reformar até a época bem avançado do século 19.
Este quadro, sem dúvida, deve chocar a muitos leitores, em
face de sua incompatibilidade com as ideias acerca de Marx a que tem sido
expostas. Antes de continuar para fundamentá-lo, porém, quero ressaltar a
ironia existente no fato de que a descrição feita da meta de Marx e a do
conteúdo de sua concepção do socialismo ajustarem-se quase exatamente à
realidade da sociedade capitalista ocidental dos dias de hoje. A maioria das
pessoas é motivada por um desejo de maiores ganhos materiais, conforto e
aparelhos de toda sorte, e esse desejo só é restringido pelo desejo de
segurança e de evitar os riscos. Elas ficam cada vez mais satisfeitas com uma
vida regulamentada e dirigida, tanto na instância da produção quanto na do
consumo, pelo Estado e grandes empresas e pelas respectivas máquinas
burocráticas; elas chegaram a um grau de conformismo que eliminou a
individualidade em grande parte. Elas são, para empregar a expressão de Marx,
impotentes “homens-mercadoria” que servem à máquinas potentes. O próprio
retrato do capitalismo de meados do século 20 é difícil de ser diferenciado da
caricatura do socialismo marxista desenhada por seus opositores.
O que é ainda mais surpreendente é o fato de que as pessoas
que acusam Marx mais amargamente de “materialista”, atacarem o socialismo por
ser visionário ao não reconhecer que o único incentivo eficaz para o
homem trabalhar reside em seu desejo de ganhos materiais. A ilimitada
capacidade do homem para negar contradições flagrantes por meio de
racionalizações, desde que lhe convenha, dificilmente poderia ser melhor
demonstrada. As mesmíssimas razões alegadas como prova das ideias de Marx serem
incompatíveis com nossa tradição religiosa e espiritual, e empregadas para
defender nosso sistema atual contra Marx, são ao mesmo tempo usadas,
pelas mesmas pessoas, para provar que o capitalismo corresponde à natureza
humana, e, portanto, é bem superior a um socialismo “visionário”.
Procurei demonstrar a total falsidade desta interpretação de
Marx, bem como que a teoria dele não admite a vantagem material como principal
motivação do homem; que, além disso, a própria meta de Marx é libertar o homem
da pressão das necessidades econômicas, de modo a poder ser completamente
humano; que Marx está fundamentalmente interessado na emancipação do homem como
indivíduo, na superação da alienação, na restauração da capacidade dele para
relacionar-se inteiramente com seus semelhantes e com a natureza; que a
filosofia de Marx constitui um existencialismo espiritual em linguagem secular
e, por força desta qualidade espiritual, opções à prática materialista e à
tenuamente disfarçada filosofia materialista de nossa época. A meta de Marx, o
socialismo baseado em sua teoria do homem, é essencialmente o messianismo
profético expresso em linguagem do século 19.
Como pode, então, a filosofia de Marx ser tão completamente
mal interpretada e deformada? São diversas as razões. A primeira e mais óbvia é
a ignorância. Afigura-se que, não sendo esses assuntos ensinados nas
universidades e, por conseguinte, não sujeitos a exames, dão margem de
“liberdade” para todos pensarem, escreverem e falarem como bem entendem e sem
qualquer conhecimento de causa. Não há propriamente autoridades consagradas
aptas a insistir no respeito pelos fatos e na verdade. Daí todos acharem-se no
direito a falar de Marx sem o haverem lido ou, pelo menos, sem o haverem lido
suficientemente para obter uma ideia de seu sistema de pensamento, deveras
complexo, intrincado e sutil. Em nada melhorou a situação no fato de os
Manuscritos Econômicos e Filosóficos, a principal obra filosófica de Marx
dedicada a seu conceito do homem, de alienação, de emancipação, etc., não terem
sido senão até bem pouco traduzidos para o inglês, e por isso serem
desconhecidas do mundo de língua inglesa algumas de suas ideias. Este fato,
contudo, não é de forma alguma suficiente para explicar a ignorância
predominante: primeiro, porque, não ter sido essa obra de Marx traduzida antes
par ao inglês, é em si mesmo tanto sintoma como causa da ignorância; segundo,
porque a orientação principal do pensamento filosófico de Marx é bastante clara
nos trabalhos anteriormente publicados em inglês para evitar a adulteração
ocorrida.
Outra razão consiste em terem os comunistas se apropriado da
teoria de Marx e tentado convencer o mundo de que sua prática e teoria
obedeciam às ideias dele. Malgrado o oposto seja verdade, o Ocidente aceitou as
alegações da propaganda deles e admitiu que a posição de Marx corresponde à
opinião e à prática russas. Não obstante, os comunistas russos não são os
únicos culpados da má interpretação de Marx. Embora o desprezo brutal dos
russos pela dignidade individual e pelos valores humanistas seja, de fato, específico
deles, o erro de interpretar Marx como propositor de um materialismo
econômico-hedonista também foi compartilhado por muitos dos socialistas
anticomunistas e reformistas. Não é difícil perceber as razões disso. Conquanto
a teoria de Marx fosse uma crítica ao capitalismo, muitos de seus adeptos
estavam entranhadamente impregnados do espírito do capitalismo que
interpretaram o pensamento de Marx nas categorias econômicas e materialistas
vigentes no capitalismo contemporâneo. Com efeito, apesar dos comunistas
soviéticos, assim como os socialistas reformistas, acreditarem serem inimigos
do capitalismo, conceberam o comunismo – ou socialismo – segundo o espírito do
capitalismo. Para eles, o socialismo não é uma sociedade humanamente diferente
do capitalismo, mas antes, uma forma de capitalismo em que a classe operária
tivesse atingido uma posição superior; ele é, como Engels certa vez observou
ironicamente, “a sociedade de hoje sem seus defeitos”.
Até aqui abordamos razões racionais e realistas para a deturpação
das teorias de Marx. É inegável, contudo, haver também razões irracionais que
ajudaram a produzir tal distorção. A Rússia soviética tem sido encarada como a
própria encarnação de todo o mal; daí terem suas ideias assumido a qualidade do
que é diabólico. Tal e qual em 1917, quando dentro de relativamente pouco tempo
o Kaiser e os “hunos” foram olhados como a corporificação do mal, e até a
música de Mozart se tornou parte do território do diabo, assim também os
comunistas tomaram o lugar do diabo e suas doutrinas não são examinadas com
objetividade. A razão geralmente dada para este ódio é o terror praticado por
Stálin durante muitos anos. Há sérias razões, contudo, para por em dúvida a
sinceridade dessa explicação; os mesmos atos de terror e desumanidade quando
praticados pelos franceses da Argélia, por Trujillo em São Domingos e por
Franco na Espanha não provocam nenhuma indignação moral equivalente; de fato,
nenhuma indignação. Outrossim, a mudança do sistema de terror irrefreado de
Stálin para o reacionário Estado policial de Kruschev recebeu insuficiente
atenção, malgrado fosse de imaginar que qualquer pessoa seriamente interessada
na liberdade humana perceberia e ficaria feliz com tal mudança, que, embora não
suficiente, é uma grande melhoria em relação ao terror indisfarçado da era de
Stálin. Tudo isso faz-nos pensar se a indignação contra a Rússia terá deveras
suas raízes em sentimentos morais e humanitários, ou antes no fato de um
sistema que não admite a propriedade privada ser considerado desumano e
ameaçador.
É difícil dizer a qual dos fatores acima mencionados cabe
maior responsabilidade pela deturpação e má interpretação da filosofia de Marx.
Provavelmente variam de importância conforme a pessoa e o grupo político, e é
improvável ser qualquer deles o único fator responsável.
Erich Fromm é
psicanalista e autor de várias obras importantes para a compreensão da
sociedade capitalista, entre as quais O
Medo à Liberdade; Análise do Homem; Psicanálise da Sociedade Contemporânea; Meu
Encontro com Marx e Freud.
É triste dizer, mas não pode ser evitado, que essa ignorância e essa deturpação
de Marx são mais comuns nos Estados Unidos do que em qualquer outro país
ocidental. Deve ser especialmente mencionado que nos últimos quinze anos houve
um extraordinário renascimento de discussões sobre Marx na Alemanha e na
França, mormente em torno dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos
publicados neste volume. Na Alemanha, os participantes dos debates são
sobretudo teólogos protestantes. Menciono, inicialmente, os extraordinários Marxismusstudien
(Estudos Marxistas), organizados por I. Fetscher, 2 volumes. I. C. B. Mohr
(Tübingen, 1954, 1957). Ademais, a excelente introdução por Landshur à edição
Kroner dos Manuscritos. A seguir, as obras de Lukács, Bloch, Pepitz e outros,
citados adiante. Nos Estados Unidos, tem sido observado ultimamente um
interesse por Marx, que cresce aos poucos. Infelizmente, em parte se manifesta
através de diversos livros cheios de prevenção e adulterações, como The Red
Prussian, de Schwarzchild, ou de livros excessivamente simplificados e
enganadores como The Meaning of Communism, de Overstreet. Em contraste,
Joseph A. Schumpeter, em seu Capitalism, Socialism and Democracy (Harper
& Brothers, 1947), dá uma excelente apresentação do marxismo. Cf. também o
problema do naturalismo histórico, Christianity and Communism, de John
C. Bennet (Association Press, Nova York). Ver, igualmente, as excelentes
antologias (e introduções) de Feuer (Anchos Books) e de Bottomore e Rubel
(Londres, Watts and Co.). Especificamente, acerca da opinião de Marx sobre a
natureza humana desejo mencionar Human Nature: The Marxist View, por
Venable, que, malgrado sagaz e objetivo, padece do fato de o autor não ter
podido recorrer aos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Cf., ainda,
para a base filosófica do pensamento de Marx, o brilhante e penetrante livro de
H. Marcuse, Reason and Revolution (Nova York, Oxford University Press,
1958). Ver, também, meu estudo de Marx em The Sane Society, já citada. A minha
discussão anterior da teoria de Marx em Zeitschrift für Sozialforschung,
vol. 1 (Leipzig, Hirschfeld, 1932). Na França, os debates têm sido em parte
conduzidos por padres católicos e em parte por filósofos, na maioria
socialistas. Entre os primeiros, cito especialmente, J. Y. Calvez, La Pensée
de Karl Marx, Paris, ed. Du Seil, 1956; entre os últimos, A. Kojève, Sartre
e, sobretudo, as várias obras de Henri Lefebvre.
A primeira versão inglesa foi publicada em 1959, na Inglaterra, por Lawrence
and
Wishart, utilizando uma tradução recentemente publicada pela Editora de Línguas
Estrangeiras, de Moscou. A tradução por Tom Bottomore, incluída neste volume, é
a primeira feita por um estudioso ocidental.