sábado, 27 de abril de 2019

A Função do Caráter Social em Erich Fromm


A Função do Caráter Social em Erich Fromm



Rafael Adilson Ribeiro
 
Desde os seus primeiros textos Erich Fromm (1900-1980) afirma que o marxismo é um humanismo que tem por objetivo possibilitar o pleno desabrochamento das potencialidades do homem. De modo tal, que o estudo do capital constitui o instrumento crítico que Marx utiliza para a compreensão da situação alienante do homem na sociedade industrial. Essa interpretação de Fromm deve revelar as raízes e o sentido geral que sua obra tomará, ou seja, o aprofundamento das argumentações humanista, que um pouco mais tarde buscará complemento no freudismo, com vistas a compreender a interação entre natureza humana e sociedade. No presente texto procuramos esclarecer a formação e o funcionamento do conceito frommiano de caráter social, o qual constitui um dos principais termos de suas análises.
Com o desenvolvimento do pensamento de Marx, muitos socialistas marxistas, especialmente nos países do leste europeu que tentaram implantar o socialismo, mas também no ocidente, tornaram-se conscientes do fato de que a teoria marxista carece de uma teoria psicológica que satisfaça a necessidade do homem por um sistema de orientação e fundamentação de normas éticas. De outro lado, desenvolvendo o discurso crítico inaugurado por Marx, os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt buscaram completar a crítica de Marx com a psicologia de Freud a fim de elaborar teorias críticas capazes de melhor diagnóstico e análise de situações sociais e culturais presentes. Trata-se do movimento conhecido como freudo-marxismo que tem como pano de fundo, dois fatos históricos: a Revolução Russa de 1917 e a ascensão de Hitler ao poder, em 1933.
Ambos os fatos colocam em evidência a importância do fator subjetivo da história até então negligenciado pelos marxistas ortodoxos, haja vista que estes analisam os acontecimentos em termos políticos e econômicos. Se, no caso da Revolução Russa, o que chama a atenção é a constatação de que a revolução acontece mesmo sem as forças produtivas estarem prontas, no caso da tomada de poder por Hitler, é o apoio que este recebe da classe operária o fator intrigante. A questão gira em torno de saber por que o proletariado apoia Hitler, agindo em desacordo com seus interesses de classe, ou seja, como aceitam o fascismo voluntariamente. Tendo em vista que a análise em termos econômico-políticos não dá conta de esclarecer essa controvérsia, o conhecimento da psicologia será utilizado como um instrumento de crítica da sociedade, na medida em que pode explicar a subjetividade e o comportamento humano.
Para ser fiel ao pensamento de Marx e poder completar sua teoria, a psicologia tem de ver a evolução das forças psíquicas como um processo de interação constante entre as necessidades do homem e a realidade social e histórica da qual ele participa. Tem de ser uma psicologia que surge, desde início, como psicologia social. E a psicologia de Freud, que começa a ser publicada depois da morte de Marx, cumpre essas condições principais.
Contudo, a tradição que buscou unir o marxismo com o freudismo, da qual Fromm pertence, realizou a revisão de alguns dos conceitos e das teorias de Freud. Para Erich Fromm, fenômenos psíquicos como isolamento, medo, inatividade, alienação e ansiedade, que atuam e contribuem para fundamentar a sociedade tecnologicamente organizada, assumiram o papel central que, na visão de Freud, era atribuído ao recalcamento da sexualidade.
 Em Erich Fromm, foi a teoria freudiana da libido que sofreu maiores críticas por estar enraizada num fisiologismo mecanicista de visão fundamentalmente biológica a respeito do homem. Fromm discorda dessa concepção, ele diz:
 
Procurei ater-me às descobertas básicas de Freud, substituindo, porém, sua filosofia mecanicista-materialista por uma humanista. O homem não é uma máquina que é regulada por um mecanismo de “tensão-distensão” deflagrado quimicamente. O homem é uma totalidade e tem a necessidade de relacionar-se com o mundo.[1] (FROMM, 1992:14).
 
Assim, na compreensão do conceito frommiano de homem, há um momento da história humana em que houve uma separação primordial de vivência com a natureza, quando se romperam seus vínculos imediatos com a mesma e o homem deixou de ser um animal puramente instintivo; ele se tornou um animal racional e ambíguo, que ganhou individuação e liberdade, ao mesmo tempo, em que perdeu a segurança e a harmonia do pertencimento unitário à natureza.
Desde então, a história é construída pelos homens, que já sempre se encontram nessa condição de ambiguidade e dicotomia inerentes à sua existência. De um lado, o homem encontra-se livre para agir, do outro, está sempre determinado pelas maneiras que construiu para superar as adversidades. Desse ponto de vista, é a necessidade constante de superar essas dicotomias que influenciam as atividades humanas, levando-os a desenvolver as condições sócio-econômicas e ideológicas que podem tornar isso, de algum modo, possível.
 
A necessidade de encontrar soluções sempre renovadas para as contradições de sua existência, de encontrar formas cada vez mais elevadas de unidade com a natureza, com seus próximos e consigo mesmo, é a fonte de todas as forças psíquicas motivadoras do homem, de todas as suas paixões, seus afetos e suas ansiedades. [2] (FROMM, 1963:38).
 
Portanto, partindo de outra concepção de homem, o revisionismo de Erich Fromm enfatiza a importância dos fatores econômicos, ideológicos e culturais na formação do caráter do homem. Na crítica social de Fromm está sempre presente o fato de que a natureza humana possui, além das necessidades fisiológicas básicas, algumas outras necessidades psíquicas decorrentes da condição humana que precisam, igualmente, serem satisfeitas, caso contrário, na interação entre natureza humana e forças econômicas, deverão surgir elementos que irão agir para a desintegração social.
Enfatizando a influência de fatores econômicos e ideológicos na formação do caráter, o próprio Fromm descreve sua orientação como sendo sociobiológica e centralizada em torno do problema da sobrevivência, concebendo o homem, antes de tudo, como um ser social que necessita relacionar-se com o mundo a fim de sobreviver física e mentalmente. Isso insere o homem em dois processos fundamentais de socialização e assimilação que dizem respeito à necessidade humana de se relacionar com os outros e de adquirir coisas. Segundo Fromm, é a função do caráter orientar e canalizar a energia humana através desses processos que permitem ao homem sobreviver. Assim, O caráter cumpre uma função sócio-biológica que não só determina a formação do caráter individual ao modelar a energia do indivíduo, mas também a do caráter social.
 Na base de sua abordagem, Fromm refere-se às afirmações de Freud em Psicologia Coletiva e Análise do Ego,onde se lê nas primeiras linhas do texto freudiano:
É verdade que a psicologia individual diz respeito ao indivíduo e explora as trilhas pelas quais busca encontrar satisfação para seus impulsos instintivos, mas só raramente e sob certas condições excepcionais a psicologia individual está em posição de negligenciar as relações deste indivíduo com os outros. Na vida mental do indivíduo alguém mais está invariavelmente envolvido, como modelo, como objeto, como auxiliar e como oponente; e por isso, desde o começo a psicologia individual é simultaneamente, no sentido mais amplo da palavra, psicologia social.[3] (FREUD, 1975: 69)
Portanto, corroborando as palavras de Freud citadas acima, Fromm afirma que o indivíduo deve ser entendido, desde sempre, como já socializado e, portanto, tendo o seu caráter desenvolvido e determinado por meio da sua relação com a sociedade. Sendo assim, a diferença entre a psicologia individual e a psicologia social pode ser, por esta razão, apenas quantitativa. Para Fromm, tanto a psicologia social quanto a psicologia individual tenta compreender a estrutura psíquica a partir das experiências de vidas pessoais, Todavia, Fromm as compreende sendo determinadas, fundamentalmente, como resultado das práticas e estilos de vida comum a muitos indivíduos em uma determinada situação sócio-econômica e que são, portanto, de importância decisiva para a orientação do indivíduo específico.
Consequentemente, a psicologia social de Erich Fromm deseja investigar como certos sintomas e neuroses observados nos membros de uma mesma sociedade estão relacionados com as experiências de vida comuns entre os membros dessa sociedade. Nesse sentido, o caráter social compreende a soma dos traços comuns do caráter da maior parte dos indivíduos, formado como resultado das experiências de vida desses indivíduos enquanto inseridos em uma mesma situação social.
No apêndice de seu livro O Medo à Liberdade Fromm diz: “A função subjetiva do caráter é levar a pessoa a agir de acordo com o que é necessário para ela sob um ponto de vista prático e, também, proporcionar-lhe satisfação psicológica através de sua atividade.” [4]É através da atividade, isto é, do trabalho que a pessoa é levada à corrente da sociedade e do processo social, recebendo um lugar onde possa produzir dentro de um determinado sistema econômico. Os membros dessa sociedade, as várias classes ou grupos nela existentes precisam se comportar da maneira que lhes permita funcionar no sentido exigido pelo sistema social. Desse modo, a função do caráter social consiste em modelar as energias dos membros da sociedade de tal forma que sua conduta não seja assunto de decisão consciente quanto a seguir ou não a norma social, mas uma questão de desejarem se comportar como têm de se comportar, encontrando, ao mesmo tempo, prazer em proceder da forma exigida pela cultura. Em outras palavras, a função do caráter social consiste em moldar e canalizar a energia humana em uma determinada sociedade, para que esta possa continuar funcionando continuamente.  (FROMM, 1974: 223).
Um dos principais fatores para a formação e a manutenção do caráter social são as organizações familiares e os sistemas educacionais. Estes podem ser considerados, diz Fromm, como os agentes psíquicos da sociedade. Por meio deles, principalmente da família, uma vez que o caráter da maior parte dos pais é expressão do caráter social, transmitem-se à criança os traços essenciais da estrutura de caráter socialmente desejável. Por isso, o sistema educacional e outros aparelhos culturais têm seu poder de autoridade facilitado e legitimado, apresentando o poder econômico e político como prolongamentos naturais da autoridade paterna, consolidando o caráter social, ao mesmo tempo em que nele se originam.
Igualmente, agindo no sentido de sistematizar e estabilizar o caráter social, está a forma de organização do sistema de produção e distribuição em uma sociedade, que por sua vez, determinam as relações sociais e os modos de vida praticados em tal sociedade.
Sendo assim, é incutido, por exemplo, no caráter dos homens da sociedade industrial moderna, por meio do caráter social, a exigência de que sua energia e disciplina sejam dedicadas ao trabalho. Ele interioriza várias atitudes sobre o valor e dever do trabalho, o que funciona eficientemente para controlar o seu comportamento. A esse respeito, Fromm diz o seguinte: A necessidade de trabalhar, de pontualidade e ordem teve de ser transformada em impulso interior para esses objetivos. Isto quer dizer que a sociedade teve de produzir um caráter social a que tais impulsos fossem inerentes.”[5]Portanto, a função do caráter social é transformar uma necessidade social num impulso interior em cada indivíduo. Esse caráter constitui o intermediário entre a estrutura sócio-econômica e as ideias dominantes numa sociedade, funcionando em ambas as direções, da base econômica para as ideias e das ideias para a base econômica. (FROMM, 1963: 88).
Como se buscou mostrar, uma vez que certas necessidades foram incutidas em uma estrutura de caráter, qualquer comportamento ajustado a elas é, ao mesmo tempo, satisfatório psicologicamente e prático sob o ponto de vista das condições objetivas. Enquanto uma sociedade oferece ao indivíduo essas duas satisfações simultaneamente, há uma situação em que as forças psicológicas preservam a estrutura social.
Nessas circunstâncias, a estrutura libidinal típica, comum a todos os homens de um contexto histórico específico, exerce uma função decisiva para a estabilidade social. É ela que estabelece os vínculos afetivos pelos quais as classes oprimidas se relacionam com as classes dirigentes, levando as primeiras a aceitar passivamente sua opressão.
Contudo, em circunstâncias anormais, quando surgem novas condições econômicas, os traços de caráter tradicionais se tornam inúteis, e podem gerar verdadeiras desvantagens e reações, nos sentidos destrutivos ou criativos, revolucionários ou conservadores.
Essas considerações mostram que a síntese frommiana de marxismo e psicanálise envolve, no quadro do progresso histórico, o domínio social não só da natureza, mas, também do próprio ser natural do homem, no qual as racionalizações se inscrevem como ideologias do comportamento socialmente exigido no âmbito mais vasto das relações entre indivíduos influenciados e determinados pelo esquema sócio-econômico em que encontram ou não a realização das suas necessidades. Por isso, mesmo o modo como as ideologias são produzidas e funcionam pode ser corretamente perspectivado se chegarmos à compreensão mais ampla da estrutura de caráter. Para tanto, Fromm parece ter dado um importante passo com a caracterização do dispositivo instintivo de um grupo, seu comportamento libidinal e predominantemente inconsciente, em função da estrutura econômica, por meio de seu conceito de caráter social. Isso pode fornecer um conhecimento mais objetivo de um fator essencial no processo social, a saber, a natureza do próprio homem como parte funcional da infraestrutura. Se Marx afirma que os homens são os produtos das suas ideologias, o conhecimento da estrutura de caráter pode descrever o processo de produção dessas mesmas ideologias, evidenciando como o mecanismo cultural da sociedade serve também para enfraquecer as forças da libido até que deixem de constituir uma ameaça à estabilidade social.
 
 
Bibliografia:

FREUD, S. Psicologia das Massas e Análise do Ego. –na Standard Edition dos trabalhos psicológicos completos de Freud traduzida por J. Strachey. Amorrortu Editores. Buenos Aires. 1975. Vol. XVIII.
FROMM, E. A descoberta do Inconsciente Social: Contribuição ao redirecionamento da Psicanálise. Tradução: Lúcia H. S. Barbosa. São Paulo. Manole. 1992. (Obras Póstumas; 3)
___________. Psicanálise da sociedade Contemporânea. Tradução: L. A. Bahia e Giasone Rebuá. Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1963.
___________. O Medo à Liberdade. Tradução: Octavio A. Velho. Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1974.
 


[1] Fromm Erich. A descoberta do Inconsciente Social: Contribuição ao redirecionamento da Psicanálise. 1992. P.14.
[2] Fromm Erich. Psicanálise da sociedade Contemporânea. 1963. P.38.
[3] Freud Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Ego. 1975. Vol. XVIII, p.69.
[4] Erich Fromm. O Medo à Liberdade. Apêndice: O Caráter e o Processo Social. 1974. P.223.
[5]Fromm Erich. Psicanálise da sociedade Contemporânea. 1963. P. 88.
------------

quinta-feira, 25 de abril de 2019

O Caráter Revolucionário


O Caráter Revolucionário
Erich Fromm




O conceito de “caráter revolucionário” é político e psicológico. Sob esse aspecto, assemelha-se ao conceito do caráter autoritário, introduzido na Psicologia há cerca de trinta anos, e que combinava uma categoria política, a da estrutura autoritária no Estado e família, com uma categoria psicológica, a estrutura do caráter, que forma a base dessa estrutura política e social.

O conceito do caráter autoritário nasceu de certos interesses políticos. Aproximadamente em 1930 na Alemanha, desejávamos saber as possibilidades de ser Hitler derrotado pela maioria da população[1]. Na época, a maior parte da população alemã, especialmente os trabalhadores e funcionários, era contra o nazismo.    Estava ao lado da democracia, como o demonstraram as eleições políticas e sindicais.   A questão era se lutaria pelas suas ideias, no caso de ser isso necessário.  A premissa era a de que ter uma opinião é uma coisa, ter uma convicção é outra. Ou, em outras palavras, qualquer pessoa pode adotar uma opinião, como pode aprender uma língua ou costume estrangeiro, mas somente as opiniões arraigadas na estrutura do caráter da pessoa, atrás da qual está a energia encerrada em seu caráter - somente essas opiniões se tornam convicções.   O efeito das ideias, que são fáceis de aceitar se proclamadas pela maioria, depende em grande parte da estrutura de caráter de uma pessoa numa situação crítica. O caráter, como disse Heráclito e Freud demonstrou é o destino do homem. A estrutura do caráter decide qual a ideia que o homem escolherá, e decide também a força da ideia escolhida. Isso tem realmente grande importância no conceito freudiano do caráter - o de que ele transcende o conceito tradicional de comportamento e se relaciona com o comportamento dinamicamente carregado, de modo que o homem não somente pensa de certa forma como também seu pensamento mesmo é proveniente de suas inclinações e emoções.

A pergunta que fizemos, naquela época, foi: até que ponto os trabalhadores e funcionários alemães têm uma estrutura de caráter que se opõe ao autoritarismo nazista? E isso implicava outra questão: até que ponto os trabalhadores e empregados alemães, na hora crítica, combaterão o nazismo? Fêz-se um estudo e o resultado foi que, falando de modo geral, 10% dos trabalhadores e funcionários alemães tinham o que chamaríamos de estrutura de caráter autoritária; cêrca de 15% tinham uma estrutura de caráter democrática, e a grande maioria - cerca de 75% - era de pessoas com uma estrutura de caráter representando uma mistura desses extremos[2]. A suposição teórica foi a de que os autoritários seriam nazistas ardentes, os “democráticos” seriam militantes antinazistas, e a maioria nem uma coisa nem outra. Tais suposições teóricas revelaram-se mais ou menos certas, como os fatos ocorridos entre 1933 e 1945 mostraram[3]. 

Para nosso objetivo aqui, basta dizer que a estrutura de caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo senso de força e identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às autoridades, e ao mesmo tempo um domínio simbiótico dos que estão submetidos à sua autoridade. Ou seja, o caráter autoritário sente-se mais forte quando pode submeter-se a uma autoridade e ser parte dela, desde que seja (e até certo ponto apoiado na realidade) exagerada, deificada, e quando ao mesmo tempo pode crescer pelo fato de incorporar os que lhe estão sujeitos à autoridade. É um estado de simbiose sádico-masoquista, que lhe dá uma sensação de força e de identidade. Sendo parte de algo grande (qualquer que seja), ele se torna grande.  Se estivesse sozinho, se reduziria a nada.  Por essa simples razão, uma ameaça à autoridade e uma ameaça à estrutura autoritária são, para o caráter autoritário, uma ameaça a si mesmo - à sua sanidade. Por isso, ele é forçado a lutar contra tal ameaça como lutaria contra um perigo à sua vida ou sanidade.

Referindo-me agora ao conceito de caráter revolucionário, gostaria de começar mostrando o que não me parece que esse caráter seja.   Evidentemente, não se trata de uma pessoa que participa de revoluções. Tal é exatamente a distinção entre comportamento e caráter no sentido dinâmico freudiano. Qualquer pessoa pode, por várias razões, participar de uma revolução, a despeito do que sinta, desde que aja pela revolução. Mas o fato de agir como revolucionário pouco nos revela do seu caráter.
A segunda coisa que o caráter revolucionário não me parece ser é um pouco mais complicada. Ele não é um rebelde. Que entendo por isso?[4]Defino o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra a autoridade Por não ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a autoridade devido ao seu ressentimento e, em consequência, constituir-se na autoridade, em substituição à derrubada. Muito frequentemente, no momento mesmo em que atinge tal objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que combatia tão acerbamente, antes.

O tipo caracterológico do rebelde é bem conhecido na história política do século XX.    Tome-se, por exemplo, uma figura como Ramsay MacDonald, que começou como pacifista e um homem que tinha objeções de consciência. Quando conquistou poder suficiente, deixou o Partido Trabalhista para unir-se às próprias autoridades que combatera durante tantos anos, dizendo a seu amigo e ex-camarada, Snowdon, no dia em que ingressou no Governo Nacional: “Hoje, toda duquesa em Londres desejará beijar-me nas duas faces.” Temos aqui o tipo clássico de rebelde que usa a rebelião para tornar-se autoridade.

São necessários anos, por vezes, para atingir isso; outras vezes, as coisas correm mais rápidas. Se tomarmos, por exemplo, uma personalidade como o infeliz Laval, na França, que começou como rebelde, podemos lembrar que um curto espaço transcorreu até que ele adquirisse bastante capital político para poder vender-se.   Há muitos outros a mencionar, mas o mecanismo psicológico é sempre o mesmo. Poderíamos dizer que a vida política do século XX é um cemitério encerrando os túmulos morais de pessoas que começaram como revolucionários e revelaram-se apenas rebeldes oportunistas.

Há ainda uma coisa que o caráter revolucionário não é, e um pouco mais complicada do que o conceito do rebelde: não é um fanático. Os revolucionários, no sentido de comportamento, são frequentemente fanáticos, e nesse ponto a diferença entre o comportamento político e a estrutura de caráter é bastante evidente - pelo menos, tal como vejo o caráter do revolucionário. Que entendo por fanático?      Não quero dizer com isso o homem que tem uma convicção. (Poderia dizer que hoje tornou-se moda chamar a todos os que têm uma convicção de “fanáticos” e a todos que não a têm, ou cuja convicção é facilmente modificável, de “realistas”.).

Creio ser possível descrever o fanático clinicamente como a pessoa excessivamente narcisista - na realidade, a pessoa que está próxima da psicose (depressão, frequentemente unida a tendências paranoicas), uma pessoa completamente desligada, como qualquer psicótico, do mundo exterior. Mas o fanático encontrou uma solução que o salva da psicose evidente. Escolheu uma causa, qualquer que seja – política, religiosa ou outra – e a endeusou. Fez dela um ídolo, e, pela completa submissão a ele, adquire um apaixonado senso da vida, um sentido para a vida, pois em sua submissão se identifica com o ídolo, que endeusou e transformou num absoluto.

Se quiséssemos escolher um símbolo para o fanático, seria o do gelo candente.  É a pessoa apaixonada e extremamente fria ao mesmo tempo. Está desligada do mundo, e ao mesmo tempo cheia de uma paixão escaldante, a paixão da participação e da submissão ao Absoluto.  Para reconhecer o caráter do fanático devemos ouvir não tanto o que ele diz, mas observar o brilho particular em seu olhar, a paixão fria que é o paradoxo do fanático, ou seja, uma total falta de correlação fundida a uma adoração apaixonada do seu ídolo. O fanático está próximo daquilo que os profetas chamam de “adorador de ídolo”. Desnecessário dizer que ele sempre teve um papel de relevo na história, e frequentemente fingiu de revolucionário, e o que diz é precisamente – ou parece ser – o que um revolucionário diria.

Procurei explicar o que não me parece ser o caráter revolucionário.  Creio que o conceito caracterológico do revolucionário é hoje importante - tão importante, talvez, quanto o conceito do caráter autoritário. Realmente, vivemos numa época de revoluções, iniciada há cerca de trezentos anos, desde as rebeliões políticas dos ingleses, franceses e americanos, e que continuou com as revoluções sociais na Rússia, China e presentemente - na América Latina.

Nesta era revolucionária, a palavra “revolucionário” não tem atrativos em muitas partes do mundo, como qualificação positiva para muitos movimentos políticos. Na verdade, todos os movimentos que usam tal palavra alegam objetivos muito semelhantes, ou seja, o de que lutam pela liberdade e independência. Mas na realidade alguns o fazem, outros não; e por isso entendo que alguns na realidade lutam pela independência, noutros os refrões revolucionários são usados para combater os regimes autoritários, em mãos de uma elite diferente.

Como definir uma revolução?  Poderíamos defini-la no sentido do dicionário, afirmando simplesmente que é a derrubada, pacífica ou violenta, de qualquer governo e sua substituição por um novo governo. É, evidentemente, uma definição política muito formal, e sem qualquer sentido particular. Poderíamos, num senso mais marxista, definir a revolução como a substituição de uma ordem existente por outra historicamente mais progressista. Surge, naturalmente, a indagação de quem pode decidir o que é “historicamente mais progressista”. Habitualmente é o vencedor, pelo menos em seu próprio país.

Finalmente, poderíamos definir a revolução no sentido psicológico, afirmando que ela é um movimento político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pessoas de caráter revolucionário. Não se trata de uma grande definição, mas é útil do ponto de vista deste ensaio, já que coloca toda a ênfase na questão que vamos agora debater: que é o caráter revolucionário?

O traço mais fundamental do “caráter revolucionário” é ser independente – é ser livre. É fácil compreender que a independência é o oposto da ligação simbiótica aos poderosos, que ocupam posições superiores, e aos impotentes, que ocupam posições inferiores, como mencionei ao falar do caráter autoritário. Mas isso não esclarece bastante o que entendemos por “independente” e “liberdade”. A dificuldade está precisamente no fato de que as palavras “liberdade” e “independência” são usadas hoje com a implicação de que num sistema democrático todos são livres e independentes. Esse conceito de liberdade e independência tem suas raízes na revolução da classe média contra a ordem feudal, e adquiriu nova força contrastando com os regimes totalitários. Durante a ordem feudal e absolutista, o indivíduo não era nem livre nem independente. Estava sujeito a regras tradicionais ou arbitrárias, às ordens dos que estavam acima dele.  As revoluções burguesas vitoriosas na Europa e na América deram liberdade política e independência ao indivíduo.  Era uma “liberdade em relação a alguma coisa” uma independência em relação às autoridades políticas.

Foi, sem dúvida, um progresso importante, muito embora o industrialismo de hoje tenha criado novas formas de dependência, nas limitadoras burocracias que contrastam com a iniciativa e a independência sem peias do homem de negócios do século XIX. O problema da independência e liberdade, porém, é muito mais profundo do que no sentido acima. Na realidade, o problema da independência é o aspecto mais fundamental da evolução humana, desde que o vejamos em toda a sua profundidade e alcance.

O recém-nascido está ainda intimamente ligado ao seu meio ambiente. Para ele, o Mundo exterior não existe ainda como uma realidade isolada dele. Mesmo quando a criança pode reconhecer os objetos continua por muito tempo impotente, e não poderia sobreviver sem a ajuda da mãe e do pai. A impotência prolongada do ser humano, em contraste com a do animal, é uma base dessa evolução, mas também ensina a criança a apoiar-se no poder - e a temê-lo.

Normalmente, no período que vai do nascimento à puberdade, os pais são os que representam o poder e seu duplo aspecto: ajuda e punição. Na época da puberdade, o jovem atinge uma fase de evolução na qual pode prover-se (certamente nas sociedades agrárias mais simples) e não deve necessariamente sua existência social aos seus pais.  Pode tornar-se economicamente independente deles.     Em muitas sociedades primitivas a independência (particularmente em relação à mãe) se manifesta pelos ritos de iniciação que, não obstante, não modificam a dependência do clã, em seu aspecto masculino. A maturidade sexual é outro fator para estimular o processo de emancipação dos pais. O desejo e a satisfação sexual unem uma pessoa às demais, fora de sua família. O ato sexual, em si, não depende do auxílio da mãe ou do pai, e nele o jovem se sente totalmente ele mesmo.

Até mesmo nas sociedades em que a satisfação do ato sexual é adiada até cinco ou dez anos depois da puberdade, o desejo sexual despertado cria anseios de independência e provoca conflitos com a autoridade paterna e as autoridades sociais. A pessoa normal adquire esse grau de independência muitos anos após a puberdade. Mas o fato inegável é que tal independência, muito embora a pessoa possa ganhar a vida, casar-se e ter filhos, não significa que se tenha tornado realmente livre e independente.  Continua sendo, como adulto, bastante impotente e procura encontrar forças que o protejam e lhe proporcionem sentimento de segurança. O preço pago por esse auxílio é tornar-se dependente dele, perder sua liberdade e reduzir o processo de seu crescimento.   Toma seus pensamentos de empréstimo a ele, seus sentimentos, objetivos e valores – embora viva sob a ilusão de ser quem pensa, sente e faz as escolhas.

A liberdade e a independência totais só existem quando o indivíduo pensa, sente e decide por si. Só pode fazê-lo autenticamente quando atinge uma relação produtiva com o mundo exterior, que lhe permite reagir de forma autêntica. Esse conceito de liberdade e independência encontra-se no pensamento dos místicos radicais, bem como no de Marx. O mais radical dos místicos cristãos, Meister Eckhart, diz: “Que é a minha vida? Aquilo que se afasta de dentro, por si mesmo. Aquilo que se move de fora não Vive”[5] Ou: “... se o homem decide ou recebe alguma coisa do exterior, está errado. Não devemos apreender Deus nem considerá-lo fora de nós mesmos, mas como nosso e como o que está em nós”[6].

Marx, num espírito semelhante, embora não teológico, diz: “O ser não se considera como independente, a menos que seja seu próprio senhor e só é seu senhor quando deve sua existência a si mesmo. O homem que vive por favor de outro considera-se um ser dependente.      Mas vivo totalmente pelo favor de outra pessoa quando lhe devo não só a continuação de minha vida, mas também sua criação, quando ela é a sua fonte. Minha vida terá necessariamente essa causa exterior, se não for minha própria criação”[7].

OU, como Marx disse em outro lugar: “O homem só é independente se afirma sua individualidade como homem total em todas as suas relações com o mundo      ‘na visão, audição, olfato, paladar, sentimento, pensamento, desejo, amor - em suma, se afirma e expressa todos os órgãos de sua individualidade.” A independência e a liberdade são a realização da individualidade, não somente a emancipação de coação, nem a liberdade em questões comerciais.

O problema de cada pessoa é precisamente o do nível de liberdade atingido. O homem plenamente desperto, produtivo, é livre porque pode viver com autenticidade - seu ser é a fonte de sua vida.   (Não deveria ser necessário dizer que isso não significa que o homem independente seja um homem isolado, pois o crescimento da personalidade ocorre no processo de relacionar-se e interessar-se pelos outros e pelo mundo. Mas essa relação é totalmente diferente da dependência.) Enquanto para Marx o problema da independência como autorrealização leva à crítica da sociedade burguesa, Freud trata do mesmo problema dentro dos limites de sua teoria, em termos do complexo de Édipo.

Freud, acreditando que o caminho da sanidade mental está na superação da fixação incestuosa em relação à mãe, afirmou que a saúde mental e a maturidade são baseadas na emancipação e independência. Mas para ele esse processo era iniciado pelo medo da castração pelo pai, e terminava incorporando as ordens e proibições paternas no próprio eu (superego). Por isso, a independência continuava parcial (ou seja, apenas em relação à mãe); a dependência do pai e das autoridades sociais continuava através do superego.

O caráter revolucionário ídentifica-se com a humanidade e portanto transcende os estreitos limites de sua própria sociedade e pode, por isso, criticar a sua sociedade, ou qualquer outra, do ponto de vista da razão e humanidade. Não está preso no culto paroquial da cultura em que tenha nascido, e que representa apenas um acidente de tempo e geografia. Pode examinar seu meio com os olhos abertos de um homem acordado que baseia seu critério para julgar as coisas acidentais naquilo que não é acidental (a razão), nas normas que existem na raça humana e para ela.

O caráter revolucionário identifica-se com a humanidade. Encerra ainda uma profunda “reverência pela vida”, para usarmos a expressão de Albert Schweitzer, uma profunda afinidade com a vida e um profundo amor por ela. É certo, na medida em que nos assemelhamos aos outros animais, que nos apegamos à vida e lutamos contra a morte. Mas o apego à vida é algo totalmente diferente do amor à vida. Isso será ainda mais evidente se considerarmos o fato de que há um tipo de personalidade atraída pela morte, destruição e decadência, e não pela vida. (Hitler é um bom exemplo histórico disso). Esse tipo de caráter pode ser chamado de necrófilo, para usarmos uma expressão de Unamuno, em sua famosa resposta, em 1936, a um general Franco, cuja frase preferida era “Viva a morte”.

A atração da morte e destruição pode não ser consciente na pessoa, não obstante sua presença poder ser deduzida pelos seus atos. Estrangular, esmagar e destruir a vida dá-lhe a mesma satisfação que os amantes da vida encontram em fazer que esta se amplie, cresça, evolua. A necrofilia é uma verdadeira perversão, a de visar à destruição enquanto estamos vivos.

O caráter revolucionário pensa e sente de acordo com o que poderíamos chamar de “sentimento crítico” - numa clave crítica, usando um símbolo musical. O refrão latino De omnibus est dubitandum (é preciso duvidar de tudo) é parte muito importante de sua reação ao mundo. Esta tendência crítica a que me refiro não é, de forma alguma, o cinismo, mas sim uma percepção da realidade, em contraste com as ficções feitas para substituir a realidade[8].

O caráter não-revolucionário inclina-se, particularmente, a acreditar nas coisas ditas pela maioria.    A pessoa de espírito crítico reagirá precisamente de forma oposta. Adotará uma atitude crítica ao ouvir o julgamento da maioria, que é o julgamento de todos e daqueles que detêm o poder. Evidentemente, se a maioria das pessoas fosse verdadeiramente cristã, como pretende, não teria dificuldade em manter tal atitude, pois na verdade essa atitude crítica em relação aos padrões acatados foi adotada por Jesus. E foi também a de Sócrates, dos profetas e de muitos homens que, de uma forma ou de outra, reverenciamos. E somente muito depois de sua morte - ou seja, depois de estarem suficientemente mortos, a ponto de não poderem causar problemas - é que podem ser louvados sem risco.

O “espírito crítico” torna a pessoa sensível ao clichê, ao chamado bom-senso que repete a mesma tolice indefinidamente, e só tem sentido porque todos o repetem.  Talvez o espírito crítico a que me refiro não seja algo que se possa definir facilmente, mas, se realizarmos experiências conosco e com outros, descobriremos facilmente a pessoa que o tem.

Como milhões de pessoas, por exemplo, acreditam que pela corrida atômica a paz pode ser mantida? Toda a experiência passada contraria tal suposição. Quantas pessoas acreditam que se a sirena soar - embora se tenham construído abrigos nos grandes centros metropolitanos dos Estados Unidos - poderão salvar-se?   Sabem que teriam apenas quinze minutos.  Não é preciso ser alarmista para prever que essa pessoa seria pisada de morte tentando alcançar as portas do abrigo nesses quinze minutos. Mesmo assim aparentemente, milhões acreditam que os nossos famosos abrigos subterrâneos são capazes de salvá-los de bombas de 50 ou 100 megatons. Por quê? Porque não têm espírito crítico. Um menino de cinco anos (crianças dessa idade habitualmente têm uma atitude mais crítica do que os adultos), ao ouvir a mesma história, provavelmente a colocará em dúvida.     A maioria dos adultos é suficientemente “educada” para não ter espírito crítico, e por isso aceita como “exatas” ideias que são absurdos evidentes.

Além de ter um espírito crítico, o caráter revolucionário tem uma relação particular com o poder. Não é um sonhador que não sabe que o poder pode matar, forçar e até mesmo perverter. Mas tem uma relação particular com o poder, em outro sentido. Para ele, o poder jamais se torna santificado, jamais toma o papel da verdade, da moral e do bem.  Esse é talvez um dos mais importantes, e não o mais importante, dos problemas de hoje: a relação que as pessoas têm com o poder. Não é uma questão de saber o que é o poder, nem o problema de falta de realismo, de subestimar o papel e as funções do poder. É uma questão de santificar ou não o poder, deixar-se impressionar moralmente ou não por ele. Quem se impressiona moralmente pelo poder jamais terá espírito crítico, jamais será um caráter revolucionário.

O caráter revolucionário é capaz de dizer “não”. OU, em outras palavras, o caráter revolucionário é capaz de desobediência, que para ele pode ser uma virtude.  Para explicar isso, posso partir de uma afirmação que parece bastante generalizadora: a história humana começou com um ato de desobediência e poderia terminar com um ato de desobediência. Que entendo por isso?    Ao dizer que a história humana começou com um ato de desobediência, refiro-me à mitologia hebraica e grega. Na história de Adão e Eva há a ordem divina de não comer a maçã, e o homem - ou, para sermos justos, a mulher.

- é capaz de dizer “não”.  É capaz de desobedecer e até mesmo de convencer o homem a partilhar de sua desobediência. Qual o resultado? No mito, o homem é expulso do Paraíso.

- ou seja, o homem é expulso de uma situação pré-individualista, pré-consciente, pré-histórica e, se quisermos, pré-humana, na qual o poderíamos comparar com a situação do feto no ventre materno. É expulso do Paraíso e forçado a percorrer a estrada da história.

Na linguagem do mito, ele não pode voltar. Na verdade, não é capaz de voltar.   Uma vez despertada a consciência de si, uma vez cônscio de existir como homem individual, distinto da natureza, ele não pode retornar à harmonia primitiva que existia antes dessa consciência. Com seu primeiro ato de desobediência, a história do homem começa, e esse primeiro ato de desobediência é o primeiro ato de liberdade.

Os gregos usavam um símbolo diferente, o de Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e comete um crime, que comete um ato de desobediência, e com o ato de levar o fogo para o homem a história humana - ou a civilização humana - tem início.

Tanto hebreus quanto gregos mostram que a empresa e a história humana começaram com um ato de desobediência.

E por que digo que a história humana pode terminar com um ato de desobediência?     Infelizmente não falo, nesse caso, de mitologia, mas da realidade. Se uma guerra atômica destruir, dentro de dois ou três anos, metade da população humana, e levar a um período de completa barbarização - ou se isso acontecer dentro de dez anos e possivelmente destruir toda a vida na terra -, isso será provocado por um ato de desobediência.

Ou seja, a obediência dos homens que apertam o botão aos homens que dão as ordens, e a obediência às ideias que possibilitam pensar em termos dessa loucura.

A desobediência é um conceito dialético, e todo ato de obediência é ao mesmo tempo um ato de desobediência. Que quero dizer com isso? Todo ato de desobediência, a menos que seja uma rebelião ôca, é a obediência a outro princípio. Desobedeço ao ídolo porque obedeço a Deus. Desobedeço a César porque obedeço a Deus, ou se falarmos numa linguagem não-teológica, porque obedeço aos princípios e valores, à minha consciência. Posso desobedecer ao Estado porque obedeço às leis da humanidade.    E se obedeço então realmente serei desobediente em relação a alguma outra coisa. A questão não é exatamente de desobediência ou obediência, mas de obediência ou desobediência em relação a quê e a quem.

Do que disse acima segue-se que o caráter revolucionário, no sentido em que a expressão está sendo usada aqui, não é necessariamente aquele que se manifesta apenas na política. Ele existe, na verdade, na política, mas também na religião, arte e filosofia. Buda, os Profetas, Jesus, Giordano Bruno, Meister Eckhart, Galileu, Marx e Engels, Einstein, Schweitzer, Russell são carácteres revolucionários.    Encontramos     esse caráter também no homem que não está em nenhum desses setores, num homem cujo “sim” é “sim” e cujo “não” é “não”, que é capaz de ver a realidade, tal como o menino na história de Andersen A Roupa do Imperador. Viu que o imperador estava nu, e o que disse correspondia ao que via. O século XIX talvez tenha sido o período no qual era mais fácil reconhecer a desobediência, porque foi uma época de autoridade clara, na vida familiar e no Estado. Foi, portanto, uma época de manifestação do caráter revolucionário. O século XX é um período bem diferente, e nele o moderno sistema industrial criou o homem da organização, um sistema de burocracias imensas que insistem no funcionamento suave daqueles que controla - mas antes pela manipulação do que pela força. Os administradores dessas burocracias afirmam que essa submissão às suas ordens é voluntária e procuram convencer a todos, especialmente com a satisfação material que oferecem, que gostamos de fazer aquilo que nos mandam. O homem da organização não é aquele que desobedece, é o que nem sabe que está obedecendo. Como pode pensar em desobediência, quando não tem nem mesmo a consciência de ser obediente?  É apenas um dos “rapazes”, um na multidão. É “certo”. Pensa e faz o que é razoável - mesmo que isso o mate, e a seus filhos e netos. Portanto, é muito mais difícil para o homem, na idade industrial burocrática contemporânea, ser desobediente ou desenvolver um caráter revolucionário do que o era para o homem do século XIX.
Vivemos numa época em que a lógica dos balanços, a lógica da produção de coisas, foi estendida à vida dos seres humanos, que se tornaram inúmeros, tal como as coisas. Coisas e homens são hoje quantidades no processo de produção.

Repetimos: é muito difícil ser desobediente quando não se tem nem mesmo a consciência de ser obediente.  Em outras palavras, quem pode desobedecer a um computador eletrônico? Como dizer “não” à filosofia cujo ideal é agir como um computador eletrônico, sem vontade, sem sentimento, sem paixão?

A obediência hoje não é reconhecida como obediência, por que é racionalizada como “bom-senso”, como uma aceitação de necessidades objetivas. Se é necessário produzir, tanto no Leste como no Oeste, um armamento fantasticamente destruidor, quem poderá desobedecer?      Quem se sentiria capaz de dizer “não” se tudo lhe fosse apresentado não como um ato de vontade, mas como um ato de necessidade objetiva?

Há outro aspecto relevante na situação atual.  Neste sistema industrial que, parece-me, se torna cada vez mais parecido no Ocidente e no bloco soviético, o indivíduo tem um receio mortal das grandes burocracias, da grandeza de tudo - do Estado, da burocracia industrial, da burocracia sindical. Não só tem medo como se sente terrivelmente pequeno. Quem é o Davi que pode dizer “não” a Golias? Quem é o pequeno homem que pode dizer “não” àquilo que se tornou, em grandeza e poder mil vezes maior, a autoridade de há cinquenta ou cem anos? O indivíduo está intimidado e aceita alegremente a autoridade. Aceita as ordens dadas em nome do bom-senso e da razão, para não sentir que está dominado.

Resumindo: entendo como caráter revolucionário não UM conceito ético, mas um conceito dinâmico.      Não se é “revolucionário” nesse sentido caracterológico porque      se pronunciem frases revolucionárias ou se participe de uma revolução.    O revolucionário, nesse sentido, é o homem que se emancipou dos laços de sangue e solo, da mãe e do pai, das lealdades para com o Estado, classe, raça, partido, religião. O caráter revolucionário é humanista no sentido de que se sente parte de toda a humanidade, e nada que seja humano lhe é estranho. Ama e respeita a vida. É um cético e um homem de fé.

É cético porque suspeita das ideologias como disfarce de realidades indesejáveis. É um homem de fé porque acredita no que existe potencialmente, embora ainda não tenha nascido. Pode dizer “não” e ser desobediente precisamente porque pode dizer “sim” e obedecer a princípios genuinamente seus. Não está semiadormecido, mas plenamente acordado para as realidades pessoais e sociais que o cercam. É independente, e o que é deve aos seus esforços.   É livre, e não o servo de ninguém.
Esse sumário pode sugerir que descrevi a saúde mental e o bem-estar, e não o conceito do caráter revolucionário. Na realidade, a descrição dada reproduz a pessoa sadia, viva, mentalmente sã. Minha afirmação é a de que a pessoa sadia num mundo insano, o ser humano plenamente desenvolvido num mundo aleijado, a pessoa plenamente desperta num mundo semiadormecido - é precisamente o caráter revolucionário.

Quando todos estiverem acordados, não haverá mais profetas ou caracteres revolucionários - haverá apenas seres humanos plenamente desenvolvidos.

A maioria das pessoas, naturalmente, jamais teve caráter revolucionário.  Mas a razão pela qual não vivemos mais nas cavernas é precisamente por ter havido sempre um número suficiente de caracteres revolucionários na história humana para nos tirar das cavernas e de seus equivalentes. Há, porém, muitos outros que pretendem ser revolucionários quando na verdade são rebeldes, autoritários ou oportunistas políticos.  Creio que os psicólogos têm uma função importante no estudo das diferenças de caráter entre esses vários tipos de ideólogos políticos. Mas para isso é preciso, receio, ter algumas das qualidades que procuramos descrever aqui: devem ter um caráter revolucionário.




[1] O estudo foi dirigido por mim e teve vários colaboradores, Inclusive o Dr. Schachtel. O Dr. P. Lazarsfeld colaborou como conselheiro estatístico do Instituto de Pesquisas Sociais da Universidade de Frankfurt, então dirigido pelo Dr. Max Horkheimer.
[2] O método usado foi o exame das respostas individuais a um questionário aberto, interpretando o sentido não-intencional, inconsciente, e em contraposição à resposta explícita. Se a resposta à pergunta, por exemplo, “que homens mais admira na História?” fosse “Alexandre o Grande, Napoleão, César, Marx e Lênin”, isso era interpretado como resposta “autoritária”, porque a combinação mostra uma admiração por ditadores e líderes militares. Se a resposta fosse “Sócrates, Pasteur, Kant, Marx e Lênin”, era classificada como democrática, porque revelava a admiração por benfeitores da humanidade e não por pessoas dotadas de poder.
[3] O assunto foi tratado posteriormente, e com melhor método do que no estudo original, num trabalho de T. W. Adorno e outros, The Authoritarian Personality (N. York, Harper & Row, 1950).
[4] Tratei desse problema mais detalhadamente em meu livro anterior, O Medo à Liberdade, de 1941.
[5] Sermão XVII, Meister Eckhart, An Introduction to the Study of his Works, with an Anthology of his Sermons, selecionados por James A. Clark, N. York, 1957, pág. 235.
[6] Ibid., pág. 189. Atitude muito parecida encontra-se no Zen-Budismo, na questão relacionada com a independência de Deus, Buda, ou de qualquer outra autoridade. ‘
[7] Karl Marx, Manuscritos Econômicos e Filosóficos, incluídos em Conceito Marxista do Homem, de Erich Fromm.
[8] Cf. um exame mais detalhado dessa questão em E. Fromm, Meu Encontro com Marx e Freud.

-------------
Publicado originalmente na Revista Marxismo e Autogestão, vol. 1, num. 02, 2014.
Link: