Fromm
Crítico de Freud
Nildo Viana
Resumo:
O presente artigo retoma a crítica de Fromm a Freud, mostrando as divergências
entre os dois pensadores. Fromm realiza uma crítica metodológica do
materialismo burguês e mecanicista de Freud, uma crítica teórica ao seu biologismo
e pansexualismo e, por fim, uma crítica política ao seu conservadorismo,
patriarcalismo e autoritarismo.
Palavras-chave:
Fromm, Crítica, Freud, materialismo, conservadorismo.
Abstract: The
present article retakes critical of Fromm the Freud, showing the divergences
between the two thinkers. Fromm carries through a critical methodological of
the bourgeois and mechanist materialism of Freud, a critical theoretician to
its biologism and pansexualism and, finally, a critical politics to its
conservatism, patriarcalism and authoritarianism.
Key-words:
Fromm, Critical, Freud, materialism,
conservatism.
O pensamento de Erich
Fromm tem dois pensadores que serviram de inspiração: Marx e Freud. Apesar de
se inspirar nesses pensadores, Fromm busca ir além deles e produzir sua própria
concepção, através da busca de síntese entre Marx e Freud[1].
Porém, Fromm não poupa críticas principalmente a Freud. É justamente a crítica
de Fromm a Freud que tomaremos como tema de análise no presente artigo. Sua
importância para a compreensão do pensamento de Fromm é fundamental e, além
disso, é importante porque a maioria dos leitores de Fromm geralmente não faz a
leitura de suas obras dedicadas exclusivamente a Freud (Fromm, 1976; Fromm,
1980).
Freud foi o fundador da
psicanálise. Sem dúvida, as ideias de “pai da sociologia”, “pai do comunismo”,
entre outras, são equivocadas. Porém, no caso da psicanálise, a situação é
diferente. Apesar de ter se inspirado em outros pesquisadores de sua época,
Freud foi um pensador original e a descoberta do inconsciente, embora já
esboçada em outros aspectos por outros antecessores, e a fundação da
psicanálise, tanto no que se refere à suas bases conceituais quanto à prática
institucional, se deve a Freud. Tão logo Freud lançou as bases de fundação da
psicanálise, logo foi vítima de ataques coléricos, por um lado, e de adeptos
entusiasmados, por outro. Em torno de Freud se formou um círculo de
interessados em psicanálise e estes mantinham as ideias centrais expostas por
Freud. No entanto, com o passar do tempo, aqueles que foram chamados de
“discípulos’, logo começaram a divergir do “mestre”. Alfred Adler e Carl Gustav
Jung foram os primeiros a romper com a concepção de Freud. O ponto de
divergência principal foi a primazia oferecida por Freud para a questão sexual.
Adler desenvolveria a ideia do “complexo de inferioridade” e “vontade de poder”
(Adler, 1939; Rühle-Gerstel, 1941; Mullahy, 1986) como elemento central em sua
“psicologia individual” e Jung desenvolveria a ideia de que a libido é energia
psíquica global e não de orientação sexual (Silveira, 1981; Jung, 1978;
Mullahy, 1986).
Sem dúvida, diversas outras
dissidências ocorreram no campo psicanalítico, tais como as de Reich e Fromm,
estes considerados freudo-marxistas. Aqui nos interessa fundamentalmente a
crítica de Fromm a Freud. Podemos dizer que Fromm endereçou a Freud diversas
críticas. Podemos destacar, em primeiro
lugar, a crítica metodológica; em segundo lugar, a crítica do biologismo e pansexualismo;
em terceiro lugar, a crítica política. Estes três elementos não esgotam as
divergências e críticas de Fromm a Freud, mas são as principais e base de todas
as demais divergências.
Crítica
Metodológica: Mecanicismo e Racionalismo
A crítica metodológica é
realizada em diversas obras e passagens. O elemento central de sua crítica se
encontra no caráter do materialismo de Freud: mecanicista e burguês. Isso era
relativamente comum na época de formação de Freud, época comandada pelo
materialismo burguês e cientificismo. Para Fromm, “está claro que Freud foi
educado em função do materialismo fisiológico-mecanicista predominante entre os
médicos e fisiologistas de sua época [...]”, apesar de ter elementos
sociológicos e filosóficos sem sua obra (apud Evans, 1967, p. 64). Assim, a
base metodológica de Freud foi “a teoria do materialismo burguês, tal como foi
desenvolvida, especialmente na Alemanha, por homens como Vogt, Moleschott e
Büchner” (Fromm, 1980, p.12). A concepção materialista burguesa era mecanicista
e entendia por matéria algo físico, ou seja, a matéria física[2].
“Em Kraft und Stoff (Força e Matéria)(1855), Büchner afirmou ter descoberto que não
existe força sem matéria, nem matéria sem força; esse dogma era largamente
aceito na época de Freud. O dogma do materialismo burguês era o de seus mestres,
especialmente o seu mais importante professor, Von Brücke. Freud permaneceu sob
a forte influência do pensamento de Von Brücke e do materialismo burguês em
geral; e, sob tal influência, foi incapaz de conceber a existências de fortes
poderes físicos dos quais não se pudesse demonstrar que tinham raízes
fisiológicas específicas” (Fromm, 1980, p. 12).
Outra crítica de Fromm a
Freud se encontra em seu “racionalismo obsessivo”. Para Fromm, Freud “constrói
teorias na base de praticamente nada e violenta, de fato, a razão. Fez amiúde
construção usando pequenos fragmentos de provas que levaram conclusões
absurdas” (Fromm, 1980, p. 21). O exemplo de Fromm de A História de uma Neurose Infantil é uma demonstração disso. Fromm,
após descrever o caso através das citações de Freud, conta como Freud construiu
um processo de interpretação arbitrária para encaixar o caso em sua concepção
pré-estabelecida. Para demonstrar isso, conta a narração, por Freud, do sonho
do paciente:
“Sonhei que era
noite e estava deitado em minha cama. (Os pés da cama estavam na direção da
janela; defronte da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era
inverno quando tive o sonho e que era de noite). De súbito, a janela abriu-se
sozinha e eu fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam
sentados na grande nogueira defronte da janela. Havia uns seis ou sete deles.
Eram muito brancos e pareciam mais raposas ou cães-pastores, pois tinham longas
caudas como as raposas e orelhas espetadas com os cães quando prestam atenção a
alguma coisa. Com grande terror, evidentemente com medo de ser devorado pelos
lobos, gritei e acordei” (apud. Fromm, 1980, p. 22).
A partir dessa narrativa
do sonho, Freud chegou à seguinte interpretação:
“O sonho mostra
que o menino tinha estado dormindo em seu berço com a idade de um ano e meio;
despertou certa tarde, possivelmente às 5 horas e presenciou o coitus a tergo
[por trás] três vezes seguidas. Pôde ver os órgãos genitais da mãe, assim como
o órgão do pai, e compreendeu o processo e seu significado. Por último,
interrompeu o intercurso parental de um modo que será discutido mais adiante”
(apud. Fromm, 1980, p. 23).
Fromm comenta:
“Formar uma
hipótese sobre o que realmente aconteceu ao menino de um ano e meio de idade,
partindo de um sonho que nada diz a não ser que a criança viu alguns lobos,
parece ser um exemplo de pensamento obsessivo com desprezo completo pela
realidade. Por certo, Freud usa essa associação e integra-a numa tessitura
total, mas essa tessitura não se justifica com qualquer pretensão da realidade.
Essa interpretação do sonho do Homem dos Lobos, um dos exemplos clássicos da
arte freudiana de interpretação de sonhos, é, na realidade, um testemunho da
capacidade e da inclinação de Freud para construir a realidade a partir de uma
centena de incidentes, quer conjeturados, quer obtidos por interpretação,
retirados do contexto e usados a serviço de certas conclusões que se ajustam à
ideia preconcebida de Freud” (Fromm, 1980, p. 23).
Fromm diz que vários
outros exemplos poderiam ser citados, mas por questão de espaço se limita a
este exemplo. Em outra obra, faz análise semelhante no caso da interpretação
freudiana em “Análise da Fobia de um
Menino de Cinco Anos”, também conhecido como “O Caso de Joãozinho”. Fromm demonstra novamente os problemas
interpretativos de Freud, inclusive seu pressuposto equivocado que a educação
de Joãozinho seria menos repressiva, pois ele mesmo na narrativa do caso prova
o contrário (Fromm, 1977). Claro que outros exemplos poderiam ser citados, tal
como sua interpretação do mito de Rei Édipo (Fromm, 1980; Fromm, 1980b), inclusive
pelo fato de que a interpretação de Freud não toma a trilogia e sim apenas Édipo Rei (Fromm, 1983), ou então da sua
ficção em Totem e Tabu (Viana, 2008).
A grande questão é que Freud possui uma predisposição mental para comprovar
determinadas ideias e por isso acaba abandonando a riqueza da totalidade da
realidade para se refugiar em sua interpretação unilateral (Viana, 2008), e
Fromm demonstra várias interpretações que comprovam isto.
Esse “racionalismo obsessivo”
é produto da época e da tradição iluminista que Freud se afiliava. Apesar de
ter percebido a atuação das forças irracionais no comportamento humano, a base
interpretativa de Freud era racionalista (Evans, 1967; Fromm, 1980
Crítica
ao Biologismo e Pansexualismo
Um outro elemento da
crítica de Fromm a Freud é a base pansexualista e biologista da concepção
freudiana. Ele entende que a partir do materialismo mecanicista do século 19,
Freud elaborou uma concepção que buscava encontrar uma base fisiológica para
sua abordagem psicanalítica.
“Em consonância
com o modo de pensar materialista predominante nas Ciências Naturais nos
últimos anos do século XIX, que supunha que a energia dos fenômenos naturais e
psíquicos fosse uma entidade substancial e não de relação, Freud acreditou que
o impulso sexual fosse a fonte de energia do caráter. Por meio de várias
suposições complexas e brilhantes, explicou diferentes traços de caráter como
‘sublimações’ de, ou ‘formações reativas’ contra, as várias formas do impulso
sexual. Interpretou a natureza dinâmica dos traços de caráter como uma
expressão de sua origem libidinosa” (Fromm, 1978, p. 57).
Fromm postulava uma outra
concepção, apesar de tomar como ponto de partida a elaboração freudiana, mas
fornecia uma ênfase maior aos aspectos sociais, desde a contribuição de Marx,
da antropologia social, etc. e assim se diferenciava de Freud ao não tomar os
instintos sexuais como força motriz da ação humana[3].
Ele concebe o ser humano não como fundamentalmente biológico, mas social:
“A diferença
fundamental da teoria clássica é que Freud tentou entender todas as paixões
humanas como enraizadas nas necessidades fisiológicas ou biológicas: ele fez
construções teóricas ingênuas a fim de preservar esta posição. Na estrutura
teórica apresentada aqui as pulsões mais poderosas não são as da sobrevivência
física (numa situação normal em que a sobrevivência não está ameaçada), mas
aquelas através das quais o homem busca uma solução de sua contradição
existencial; um objetivo para a sua vida que canalizará suas energias numa
direção, transcendendo-se, como um organismo que busca sobrevivência e dá significado
à sua vida. Toda evidência clínica e histórica mostra que somente a busca e a
satisfação de suas necessidades biológicas deixa o homem insatisfeito e
inclinado a sérias perturbações” (Fromm, 1992, p. 48).
Assim, Fromm discorda e
crítica Freud por seu biologismo e coloca em seu lugar elementos antropológicos
e culturais. Segundo La Fuente, “a única pulsão biológica que Fromm postula no
homem é a de viver e crescer” (1989, p. 25). Claro que Fromm avança, como
coloca La Fuente, no sentido de ir além de Freud e considerar o ser humano como
criatura supra-instintiva. A percepção de ser humano de Fromm é bem mais ampla e
totalizante do que a de Freud e esta é uma de suas principais contribuições
para a psicanálise.
Crítica
Política: Conservadorismo, Autoritarismo e Patriarcalismo
A crítica política de
Fromm a Freud é bem mais extensa. Destacaremos apenas seus traços principais.
Em várias obras e passagens ele destaca o caráter conservador, autoritário e
patriarcal de Freud. Em A Missão de Freud
ele faz um trabalho biográfico-analítico de Freud, mostrando as relações deste
com sua mãe, pai, mulheres e homens. Apesar do interesse dessa incursão de
Fromm, não poderemos, por questão de espaço, remontar tal análise, mas
tão-somente colocar em evidência a crítica de Fromm a Freud.
Freud é apresentada por
Fromm como um típico representante da sociedade vitoriana do século 19. Nesse
sentido, trata-se de um representante do patriarcalismo. A interessante análise
de Fromm da passagem das ideias iluministas no período heróico da burguesia
para a posição patriarcalista pós-revolução burguesa expressa uma aplicação do
que alguns denominariam “sociologia do conhecimento” ou, ao estilo Max Scheler,
“sociologia do saber”. Fromm distingue dois princípios e para isso retoma a
discussão sobre “direito materno”, o princípio matriarcal e o princípio
patriarcal[4].
“O princípio
matriarcal é o do amor incondicional, da igualdade natural, da ênfase sobre os
vínculos de sangue e terra, compaixão e misericórdia; o princípio patriarcal é
o do amor condicional, da estrutura hierárquica, do pensamento abstrato, das
leis feitas pelo homem, do Estado e da Justiça. Em última análise, misericórdia
e justiça representam, respectivamente, os dois princípios” (Fromm, 1977, p.
103).
Freud possuía um
pensamento patriarcalista e sua posição sobre a mulher demonstra isso:
“Uma sociedade em
que as mulheres fossem iguais aos homens, em que estes não mandassem por causa
de sua alegada superioridade fisiológica e física, era simplesmente
inconcebível para Freud. Quando John Stuart Mill, a quem Freud muito admirava,
expressou suas ideias acerca da igualdade das mulheres, Freud escreveu numa
carta: ‘Nesse ponto, Mill está simplesmente doido’. A palavra ‘doido’ é muito
característica para qualificar aquilo que é inconcebível. A maioria das pessoas
chama ‘loucas’ a certas ideias porque só são sensatas, ajuizadas, aquelas que cabem
no quadro de referência do pensamento convencional. Aquilo que o transcende é
‘loucura’, na concepção da pessoa comum. (Isso, contudo, é diferente quando o
autor, ou artista, se torna bem-sucedido. O êxito não e um atestado de sanidade
mental?). O próprio fato e que a ideia de igualdade das mulheres era
inconcebível para Freud levou-o à sua psicologia da mulher. Acredito que o seu
conceito de que metade da humanidade era biológica, anatômica e psiquicamente
inferior à outra metade é quase a única ideia, em todo o pensamento de Freud,
que parece estar desprovida de qualquer característica que a justifique, por
mais tênue que seja, salvo como um retrato de uma atitude
masculino-chauvinista” (Fromm, 1980, p. 12-13).
Fromm também afirma que
não é apenas o patriarcalismo que mostra o conservadorismo e o caráter de
classe de suas concepções. O caráter burguês perpassa toda a sua obra e isso é
visto na base dos seus enunciados teóricos e sua maneira de pensar. Fromm diz
que seria necessário “um livro inteiro” para analisar as concepções de Freud
“sob o prisma da sua origem classista” (Fromm, 1980).
Fromm destaca alguns
aspectos importantes desse pensamento classista em alguns exemplos. Em primeiro
lugar, Freud postulava, em sua prática e teoria terapêutica, o objetivo do
controle das pulsões instintivas pelo ego e superego, o que o aproximava do
pensamento teológico medieval; em segundo lugar, a “descrição grotesca” que ele
faz das mulheres, apresentadas como narcisistas, incapazes de amar e
sexualmente frias, no qual se baseava nas mulheres de “classe média” e
generalizava para a “mulher em geral”, mostrando o caráter sexista derivada de
sua concepção burguesa de mundo; em terceiro lugar, a sua concepção de amor –
Fromm afirma que Freud falava de amor muito mais do que seus seguidores
ortodoxos costumam fazer – coisificada, pois se refere ao “amor objetal”, isto
é, “amor ao objeto” e “objeto de amor”, no qual a pessoa amada não deixa de ser
objeto e passa a ser como um “investimento de capital”. Freud transformou o
“amor patriarcal” em “fenômeno humano universal”. Esta talvez seja a chave,
afirma Fromm, para a tese do “complexo de Édipo”. O “espantalho do incesto”
esconde a “essência do amor masculino”: fixação na mãe que alimenta e
simultaneamente é controlada pelo macho (Fromm, 1980).
O autoritarismo de Freud
é exemplificado por Fromm em várias oportunidades e sob várias formas.
Tomaremos apenas dois exemplos, o caso de Ferenczi (“o exemplo mais drástico da
intolerância e autoritarismo de Freud”) e o de Alfred Adler. Ferenczi foi um
discípulo e amigo fiel e despretensioso de Freud e somente no fim da sua vida é
que propôs uma alteração na técnica psicanalítica, afirmando que o paciente
precisava de amor, que não obteve na infância. Isso entrava em franca oposição
com a técnica freudiana que pregava a impessoalidade frente ao paciente.
Ferenczi encontrou com Freud e fez uma descrição detalhada de sua experiência
clínica e dos procedimentos que começou a utilizar e a reação de Freud foi a
seguinte:
“O Professor
escutou minha exposição com impaciência crescente e finalmente advertiu-me de
estar eu palmilhando terreno perigoso e afastando-me fundamentalmente das
praxes e técnicas tradicionais da Psicanálise. Ceder assim aos anseios e
desejos do paciente – não importa quão autênticos – aumentaria a dependência
deste face ao analista. Essa dependência só pode ser destruída pelo alheamento
emocional do analista. Nas mãos de analistas inábeis, disse o Professor, meu
método podia facilmente produzir a satisfação sexual em vez de ser uma
expressão de devotamento paterno ou materno. Essa advertência encerrou a
entrevista. Estendi minha mão para uma despedida afetuosa. O Professor virou-me
as costas e saiu da sala” (apud Fromm, 1976, p. 74-75).
Fromm também cita a “atitude
rancorosa” de Freud em relação ao caso da morte do “dissidente” Alfred Adler,
ao responder uma carta em que Arnold Zweig afirma ter ficado sentido com o
falecimento de Adler:
“Não entendo sua
compaixão por Adler. Para um rapaz judeu nascido num subúrbio de Viena, a morte
em Aberdeen é em si mesma uma carreira sem precedente e uma prova de quanto ele
tinha progredido. O mundo realmente recompensou-o regiamente por seus serviços
ao contradizer a Psicanálise” (apud. Fromm, 1976, p. 76).
Fromm também analisa a identificação
de Freud com grandes líderes políticos e suas ambições políticas, bem como o
caráter semi-político do movimento psicanalítico, o que reforça a interpretação
de suas tendências conservadoras e autoritárias. Apesar de sua aproximação na
juventude com ideias e pessoas liberais e socialistas, ele se afasta desta
tendência e logo assume posições bastante conservadoras, buscando naturalizar a
competição, a acumulação e outras características da sociedade burguesa. Ele
retomava o dito de Hobbes: Homo homini
lúpus (“o homem é o lobo do homem”) e naturaliza a agressividade e, por
conseguinte, a competição:
“Essa
agressividade natural do homem conduz a outro traço, dominante na imagem do
homem então corrente, sua competitividade inerente. ‘A sociedade civilizada
está perpetuamente ameaçada de desintegração por meio dessa hostilidade
primária dos homens uns contra os outros’. Essa hostilidade só aparentemente se
baseia na desigualdade econômica. “Abolindo a propriedade privada despoja-se o
amor humano da agressão de um de seus instrumentos, um instrumento forte sem
dúvida, mas por certo não o mais forte’. Qual, então, é a origem mais forte da
competitividade humana – ou antes, masculina? É o desejo dos machos de terem
acesso irrestrito e ilimitado a todas as fêmeas que possam desejar.
Originariamente, é a competição entre pais e filhos pela Mãe; depois, a
competição entre os filhos por todas as mulheres acessíveis” (Fromm, 1976, p.
110-111).
Assim, Freud manifesta
ser um indivíduo de sua época e classe social[5]
e, por isso, mostrou seus limites em sua concepção de psicanálise, o que gerou
diversas dissidências, entre elas a de Erich Fromm. Além das divergências
expostas, Fromm apresenta outras, derivadas e pontuais, que não poderemos
desenvolver no presente trabalho[6].
Repensando
Freud e Fromm
Até aqui nos limitamos a
descrever alguns dos aspectos principais da crítica de Fromm a Freud. Porém, o
bom leitor é aquele que ultrapassa a leitura dogmática, que não toma o escrito
como verdade inquestionável e sim como ponto de partida para reflexão e análise
crítica. As críticas de Fromm a Freud são corretas em quase todos os aspectos.
Porém, Fromm não aprofunda muito a crítica metodológica que faz a Freud, em
parte devido suas próprias deficiências metodológicas. Uma crítica metodológica
aprofundada da psicanálise freudiana ainda está por ser feita, embora análises
de sua “epistemologia” já tenha sido esboçada (Assoun, 1983). Além do
materialismo mecanicista identificado por Fromm, e da sua inspiração em
diversos pensadores, inclusive Darwin, é necessário perceber outros aspectos,
tal como o energetismo (Assoun, 1983) e o papel de Lamarck nesse aspecto (Ritvo,
1992), é preciso uma reconstituição mais profunda das bases metodológicas de
Freud.
A crítica do biologismo e
pansexualismo é uma das partes mais profícuas da análise de Fromm, mostrando a
importância da sociedade na constituição do ser humano e seu universo psíquico.
Porém, a forma como faz isto deixa a desejar. Em primeiro lugar, a sua ênfase
na cultura é demasiada e assim retira da análise o processo orgânico
(“biológico”) e as energias psíquicas e por isso pode confundir repressão cultural
com recalcamento psíquico (Viana, 2002; 2010); em segundo lugar, a sua proposta
alternativa acaba, devido ao seu culturalismo, não sendo suficiente para
explicar determinados fenômenos e nem para compreender o universo psíquico de
forma mais ampla.
O problema de Fromm é semelhante
ao de Freud, a falta da perspectiva da totalidade no sentido da dialética
materialista, como algo concreto. Isto é derivado, entre outras coisas, de sua
formação psicanalítica especializada que, apesar da leitura de Marx e outros
pensadores, não conseguiu ter uma percepção mais adequada da totalidade da
sociedade capitalista e do processo de acumulação de capital e das lutas de
classes, elementos ausentes em suas análises. Embora tenha exposto vários
aspectos fundamentais da sociabilidade capitalista e da mentalidade burguesa,
com suas análises das relações sociais e do que denominou “caráter social”,
principalmente em sua trilogia composta pelos livros A Análise do Homem; O Medo à Liberdade e Psicanálise da Sociedade
Contemporânea (Fromm, 1978; Fromm, 1981; Fromm, 1976), faltou-lhe a
percepção da dinâmica da sociedade capitalista e, por conseguinte, das lutas de
classes e do processo de acumulação de capital e suas conseqüências. Nesse
sentido, a abordagem de Schaar, segundo a qual o quadro de análise de Fromm não
era a sociedade de classe e sim a sociedade de massas, é relativamente correta
(Schaar, 1965). Isso, inclusive, obliterou sua concepção de transformação
social, que ficou nos limites da sociedade capitalista (Fromm, 1976).
A sua crítica ao
conservadorismo, patriarcalismo e autoritarismo de Freud é correta, embora seja
perpassada por sua concepção de patriarcalismo, que merece um estudo mais
aprofundado que não pretendemos realizar aqui. Porém, independentemente disso e
das abstrações envolvidas, é uma crítica correta, já que o sexismo de Freud é
por demais evidente e todo o seu modelo analítico, a começar pelo “complexo de
Édipo” é uma dedução do universo psíquico humano a partir do sexo masculino, uma
abstração reducionista, sem falar de outros problemas relacionados, alguns
abordados por Fromm e por questão de espaço não desenvolvemos. O problema do
autoritarismo de Freud também é evidente, apesar dos defensores do fundador da
psicanálise, como Ernst Jones, justamente criticado por Fromm por sua
“ingenuidade psicológica”. O conservadorismo de Freud também é evidente e
apenas os leitores dogmáticos é que não percebem isso (Marcuse, 1986) e seus
reflexos em sua concepção global, pois somente recortando Freud (assim como ele
fez com a realidade) é que ele poderia ser apresentado com um “revolucionário”.
A sua ruptura com Reich, por exemplo, tem como um dos principais elementos a divergência
política entre ambos[7].
Enfim, as críticas de
Fromm a Freud são fundamentais por revelar os limites da psicanálise freudiana,
bem como para alertar aos leitores dogmáticos de que suas obras são históricas,
determinadas, e não uma verdade indiscutível do psiquismo humano. E, da mesma
forma, isso vale para a obra de Fromm, embora tenha cometido menos equívocos
que Freud, só pode superar este depois dele ter inovado e desenvolvido teses
importantes para compreender o universo psíquico do ser humano. O grande mérito
de Freud foi a descoberta do inconsciente e a grande contribuição de Fromm foi
a percepção da determinação social e cultural no universo psíquico.
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[1] Sem dúvida, vários outros
pensadores inspiraram Fromm, a maioria sendo admitido por ele e alguns não
explicitados por ele. Este é o caso de Alfred Adler: “As semelhanças de Horney
e Erich Fromm com Adler foram assinaladas detalhadamente em um trabalho de
Walter T. James: ‘Adler deve ser considerado como um dos antecedentes mais
importantes de Horney e Fromm... A maior parte das ideias de Horney e Fromm são
devidas a Adler por sua aguda consciência da realidade, da influência do
ambiente total sobre a personalidade. A insistência constante de Freud sobre a
etiologia biológica fazia de toda ‘psicologia social’ real uma impossibilidade,
exceto a base do simbolismo sexual... Algumas das conclusões de Adler são
partes indispensáveis das psicologias sociais de Horney e Fromm” (Ansbacher e
Ansbacher, 1959, p. 47).
[2] Fromm distinguia esse materialismo
burguês do materialismo histórico de Marx, inclusive criticando a deformação do
pensamento deste último (Fromm, 1979) e mostrando que a concepção positivista, por
exemplo, em Lênin e Bukhárin, tomaram conta deste “marxismo” deformado (Fromm,
1983). A substituição do materialismo histórico pelo materialismo burguês teve
como principal ideólogo Lênin (), que recebeu as críticas de Korsch (1977) e
Pannekoek (1973), apesar de ser a tendência dominante na interpretação de Marx
até os dias de hoje.
[3] Nem aceitava a evolução posterior
da concepção freudiana que postulou a existência de um “instinto de morte” (apud
Evans, 1967; Fromm, 1975),
[4] Obviamente que a análise de Fromm
sobre este aspecto é bastante relevante e possui aspectos importantes, apesar
de também possuir pontos problemáticos. No entanto, aqui não será possível
realizar uma análise mais abrangente de sua abordagem, o que deixaremos para
outra oportunidade. Também é necessário destacar a preferência de Fromm pelo
princípio matriarcal e também sua consideração que é necessário uma síntese
entre os dois princípios.
[5] “Na verdade, existem poucos
pensadores que sejam ‘radicais’, no sentido de transcenderem o pensamento de
sua classe. Freud não foi um deles” (Fromm, 1980, p. 13).
[6] Um elemento que poderia ser
acrescentado é o pessimismo de Freud: “A visão de Freud é completamente
pessimista. De seu ponto de vista, a sociedade, por sua própria natureza, força
o homem a recalcar sua agressividade inata, cada vez mais. A previsão para o
futuro é que, quanto mais civilizado o homem se torna, tanto mais
potencialmente destrutivo ficará” (Thompson, 1976, p. 134). Fromm já afirma que
Freud era um típico representante do iluminismo e, portanto, um otimista, até a
ocorrência da Primeira Guerra Mundial, a qual promoveu sua mudança e transformação
em pessimista (apud. Evans, 1967).
[7] Robinson coloca que o postulado de
um “instinto de morte” por Freud na última fase do seu pensamento foi o estopim
que provocou a ruptura com Reich: “Assim, Reich, tal como Adler antes dele, foi
forçado a separar-se da psicanálise por razões tanto políticas como
intelectuais. Freud também estava plenamente cônscio da natureza ideológica da sua
divergência com Reich. Declarou, da maneira mais injusta, que o artigo de Reich
sobre masoquismo ‘culminou na afirmação absurda de que aquilo a que chamamos o
instinto de morte é um produto do sistema capitalista’. Freud chegou mesmo ao
ponto de declarar que ‘The Masochistic Charater’ tinha sido escrito ‘ao serviço
do Partido Comunista’”(Robinson, 1971, p. 30)
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