segunda-feira, 15 de abril de 2019

Fromm Crítico de Freud



Fromm Crítico de Freud





Nildo Viana


Resumo: O presente artigo retoma a crítica de Fromm a Freud, mostrando as divergências entre os dois pensadores. Fromm realiza uma crítica metodológica do materialismo burguês e mecanicista de Freud, uma crítica teórica ao seu biologismo e pansexualismo e, por fim, uma crítica política ao seu conservadorismo, patriarcalismo e autoritarismo.
Palavras-chave: Fromm, Crítica, Freud, materialismo, conservadorismo.


Abstract: The present article retakes critical of Fromm the Freud, showing the divergences between the two thinkers. Fromm carries through a critical methodological of the bourgeois and mechanist materialism of Freud, a critical theoretician to its biologism and pansexualism and, finally, a critical politics to its conservatism, patriarcalism and authoritarianism.
Key-words: Fromm, Critical, Freud, materialism, conservatism.


O pensamento de Erich Fromm tem dois pensadores que serviram de inspiração: Marx e Freud. Apesar de se inspirar nesses pensadores, Fromm busca ir além deles e produzir sua própria concepção, através da busca de síntese entre Marx e Freud[1]. Porém, Fromm não poupa críticas principalmente a Freud. É justamente a crítica de Fromm a Freud que tomaremos como tema de análise no presente artigo. Sua importância para a compreensão do pensamento de Fromm é fundamental e, além disso, é importante porque a maioria dos leitores de Fromm geralmente não faz a leitura de suas obras dedicadas exclusivamente a Freud (Fromm, 1976; Fromm, 1980).
Freud foi o fundador da psicanálise. Sem dúvida, as ideias de “pai da sociologia”, “pai do comunismo”, entre outras, são equivocadas. Porém, no caso da psicanálise, a situação é diferente. Apesar de ter se inspirado em outros pesquisadores de sua época, Freud foi um pensador original e a descoberta do inconsciente, embora já esboçada em outros aspectos por outros antecessores, e a fundação da psicanálise, tanto no que se refere à suas bases conceituais quanto à prática institucional, se deve a Freud. Tão logo Freud lançou as bases de fundação da psicanálise, logo foi vítima de ataques coléricos, por um lado, e de adeptos entusiasmados, por outro. Em torno de Freud se formou um círculo de interessados em psicanálise e estes mantinham as ideias centrais expostas por Freud. No entanto, com o passar do tempo, aqueles que foram chamados de “discípulos’, logo começaram a divergir do “mestre”. Alfred Adler e Carl Gustav Jung foram os primeiros a romper com a concepção de Freud. O ponto de divergência principal foi a primazia oferecida por Freud para a questão sexual. Adler desenvolveria a ideia do “complexo de inferioridade” e “vontade de poder” (Adler, 1939; Rühle-Gerstel, 1941; Mullahy, 1986) como elemento central em sua “psicologia individual” e Jung desenvolveria a ideia de que a libido é energia psíquica global e não de orientação sexual (Silveira, 1981; Jung, 1978; Mullahy, 1986).
Sem dúvida, diversas outras dissidências ocorreram no campo psicanalítico, tais como as de Reich e Fromm, estes considerados freudo-marxistas. Aqui nos interessa fundamentalmente a crítica de Fromm a Freud. Podemos dizer que Fromm endereçou a Freud diversas críticas.  Podemos destacar, em primeiro lugar, a crítica metodológica; em segundo lugar, a crítica do biologismo e pansexualismo; em terceiro lugar, a crítica política. Estes três elementos não esgotam as divergências e críticas de Fromm a Freud, mas são as principais e base de todas as demais divergências.
Crítica Metodológica: Mecanicismo e Racionalismo
A crítica metodológica é realizada em diversas obras e passagens. O elemento central de sua crítica se encontra no caráter do materialismo de Freud: mecanicista e burguês. Isso era relativamente comum na época de formação de Freud, época comandada pelo materialismo burguês e cientificismo. Para Fromm, “está claro que Freud foi educado em função do materialismo fisiológico-mecanicista predominante entre os médicos e fisiologistas de sua época [...]”, apesar de ter elementos sociológicos e filosóficos sem sua obra (apud Evans, 1967, p. 64). Assim, a base metodológica de Freud foi “a teoria do materialismo burguês, tal como foi desenvolvida, especialmente na Alemanha, por homens como Vogt, Moleschott e Büchner” (Fromm, 1980, p.12). A concepção materialista burguesa era mecanicista e entendia por matéria algo físico, ou seja, a matéria física[2].
“Em Kraft und Stoff (Força e Matéria)(1855), Büchner afirmou ter descoberto que não existe força sem matéria, nem matéria sem força; esse dogma era largamente aceito na época de Freud. O dogma do materialismo burguês era o de seus mestres, especialmente o seu mais importante professor, Von Brücke. Freud permaneceu sob a forte influência do pensamento de Von Brücke e do materialismo burguês em geral; e, sob tal influência, foi incapaz de conceber a existências de fortes poderes físicos dos quais não se pudesse demonstrar que tinham raízes fisiológicas específicas” (Fromm, 1980, p. 12).
Outra crítica de Fromm a Freud se encontra em seu “racionalismo obsessivo”. Para Fromm, Freud “constrói teorias na base de praticamente nada e violenta, de fato, a razão. Fez amiúde construção usando pequenos fragmentos de provas que levaram conclusões absurdas” (Fromm, 1980, p. 21). O exemplo de Fromm de A História de uma Neurose Infantil é uma demonstração disso. Fromm, após descrever o caso através das citações de Freud, conta como Freud construiu um processo de interpretação arbitrária para encaixar o caso em sua concepção pré-estabelecida. Para demonstrar isso, conta a narração, por Freud, do sonho do paciente:
“Sonhei que era noite e estava deitado em minha cama. (Os pés da cama estavam na direção da janela; defronte da janela havia uma fileira de velhas nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho e que era de noite). De súbito, a janela abriu-se sozinha e eu fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos estavam sentados na grande nogueira defronte da janela. Havia uns seis ou sete deles. Eram muito brancos e pareciam mais raposas ou cães-pastores, pois tinham longas caudas como as raposas e orelhas espetadas com os cães quando prestam atenção a alguma coisa. Com grande terror, evidentemente com medo de ser devorado pelos lobos, gritei e acordei” (apud. Fromm, 1980, p. 22).
A partir dessa narrativa do sonho, Freud chegou à seguinte interpretação:
“O sonho mostra que o menino tinha estado dormindo em seu berço com a idade de um ano e meio; despertou certa tarde, possivelmente às 5 horas e presenciou o coitus a tergo [por trás] três vezes seguidas. Pôde ver os órgãos genitais da mãe, assim como o órgão do pai, e compreendeu o processo e seu significado. Por último, interrompeu o intercurso parental de um modo que será discutido mais adiante” (apud. Fromm, 1980, p. 23).
Fromm comenta:
“Formar uma hipótese sobre o que realmente aconteceu ao menino de um ano e meio de idade, partindo de um sonho que nada diz a não ser que a criança viu alguns lobos, parece ser um exemplo de pensamento obsessivo com desprezo completo pela realidade. Por certo, Freud usa essa associação e integra-a numa tessitura total, mas essa tessitura não se justifica com qualquer pretensão da realidade. Essa interpretação do sonho do Homem dos Lobos, um dos exemplos clássicos da arte freudiana de interpretação de sonhos, é, na realidade, um testemunho da capacidade e da inclinação de Freud para construir a realidade a partir de uma centena de incidentes, quer conjeturados, quer obtidos por interpretação, retirados do contexto e usados a serviço de certas conclusões que se ajustam à ideia preconcebida de Freud” (Fromm, 1980, p. 23).
Fromm diz que vários outros exemplos poderiam ser citados, mas por questão de espaço se limita a este exemplo. Em outra obra, faz análise semelhante no caso da interpretação freudiana em “Análise da Fobia de um Menino de Cinco Anos”, também conhecido como “O Caso de Joãozinho”. Fromm demonstra novamente os problemas interpretativos de Freud, inclusive seu pressuposto equivocado que a educação de Joãozinho seria menos repressiva, pois ele mesmo na narrativa do caso prova o contrário (Fromm, 1977). Claro que outros exemplos poderiam ser citados, tal como sua interpretação do mito de Rei Édipo (Fromm, 1980; Fromm, 1980b), inclusive pelo fato de que a interpretação de Freud não toma a trilogia e sim apenas Édipo Rei (Fromm, 1983), ou então da sua ficção em Totem e Tabu (Viana, 2008). A grande questão é que Freud possui uma predisposição mental para comprovar determinadas ideias e por isso acaba abandonando a riqueza da totalidade da realidade para se refugiar em sua interpretação unilateral (Viana, 2008), e Fromm demonstra várias interpretações que comprovam isto.
Esse “racionalismo obsessivo” é produto da época e da tradição iluminista que Freud se afiliava. Apesar de ter percebido a atuação das forças irracionais no comportamento humano, a base interpretativa de Freud era racionalista (Evans, 1967; Fromm, 1980
Crítica ao Biologismo e Pansexualismo
Um outro elemento da crítica de Fromm a Freud é a base pansexualista e biologista da concepção freudiana. Ele entende que a partir do materialismo mecanicista do século 19, Freud elaborou uma concepção que buscava encontrar uma base fisiológica para sua abordagem psicanalítica.
“Em consonância com o modo de pensar materialista predominante nas Ciências Naturais nos últimos anos do século XIX, que supunha que a energia dos fenômenos naturais e psíquicos fosse uma entidade substancial e não de relação, Freud acreditou que o impulso sexual fosse a fonte de energia do caráter. Por meio de várias suposições complexas e brilhantes, explicou diferentes traços de caráter como ‘sublimações’ de, ou ‘formações reativas’ contra, as várias formas do impulso sexual. Interpretou a natureza dinâmica dos traços de caráter como uma expressão de sua origem libidinosa” (Fromm, 1978, p. 57).
Fromm postulava uma outra concepção, apesar de tomar como ponto de partida a elaboração freudiana, mas fornecia uma ênfase maior aos aspectos sociais, desde a contribuição de Marx, da antropologia social, etc. e assim se diferenciava de Freud ao não tomar os instintos sexuais como força motriz da ação humana[3]. Ele concebe o ser humano não como fundamentalmente biológico, mas social:
“A diferença fundamental da teoria clássica é que Freud tentou entender todas as paixões humanas como enraizadas nas necessidades fisiológicas ou biológicas: ele fez construções teóricas ingênuas a fim de preservar esta posição. Na estrutura teórica apresentada aqui as pulsões mais poderosas não são as da sobrevivência física (numa situação normal em que a sobrevivência não está ameaçada), mas aquelas através das quais o homem busca uma solução de sua contradição existencial; um objetivo para a sua vida que canalizará suas energias numa direção, transcendendo-se, como um organismo que busca sobrevivência e dá significado à sua vida. Toda evidência clínica e histórica mostra que somente a busca e a satisfação de suas necessidades biológicas deixa o homem insatisfeito e inclinado a sérias perturbações” (Fromm, 1992, p. 48).
Assim, Fromm discorda e crítica Freud por seu biologismo e coloca em seu lugar elementos antropológicos e culturais. Segundo La Fuente, “a única pulsão biológica que Fromm postula no homem é a de viver e crescer” (1989, p. 25). Claro que Fromm avança, como coloca La Fuente, no sentido de ir além de Freud e considerar o ser humano como criatura supra-instintiva. A percepção de ser humano de Fromm é bem mais ampla e totalizante do que a de Freud e esta é uma de suas principais contribuições para a psicanálise.
Crítica Política: Conservadorismo, Autoritarismo e Patriarcalismo
A crítica política de Fromm a Freud é bem mais extensa. Destacaremos apenas seus traços principais. Em várias obras e passagens ele destaca o caráter conservador, autoritário e patriarcal de Freud. Em A Missão de Freud ele faz um trabalho biográfico-analítico de Freud, mostrando as relações deste com sua mãe, pai, mulheres e homens. Apesar do interesse dessa incursão de Fromm, não poderemos, por questão de espaço, remontar tal análise, mas tão-somente colocar em evidência a crítica de Fromm a Freud.
Freud é apresentada por Fromm como um típico representante da sociedade vitoriana do século 19. Nesse sentido, trata-se de um representante do patriarcalismo. A interessante análise de Fromm da passagem das ideias iluministas no período heróico da burguesia para a posição patriarcalista pós-revolução burguesa expressa uma aplicação do que alguns denominariam “sociologia do conhecimento” ou, ao estilo Max Scheler, “sociologia do saber”. Fromm distingue dois princípios e para isso retoma a discussão sobre “direito materno”, o princípio matriarcal e o princípio patriarcal[4].
“O princípio matriarcal é o do amor incondicional, da igualdade natural, da ênfase sobre os vínculos de sangue e terra, compaixão e misericórdia; o princípio patriarcal é o do amor condicional, da estrutura hierárquica, do pensamento abstrato, das leis feitas pelo homem, do Estado e da Justiça. Em última análise, misericórdia e justiça representam, respectivamente, os dois princípios” (Fromm, 1977, p. 103).
Freud possuía um pensamento patriarcalista e sua posição sobre a mulher demonstra isso:
“Uma sociedade em que as mulheres fossem iguais aos homens, em que estes não mandassem por causa de sua alegada superioridade fisiológica e física, era simplesmente inconcebível para Freud. Quando John Stuart Mill, a quem Freud muito admirava, expressou suas ideias acerca da igualdade das mulheres, Freud escreveu numa carta: ‘Nesse ponto, Mill está simplesmente doido’. A palavra ‘doido’ é muito característica para qualificar aquilo que é inconcebível. A maioria das pessoas chama ‘loucas’ a certas ideias porque só são sensatas, ajuizadas, aquelas que cabem no quadro de referência do pensamento convencional. Aquilo que o transcende é ‘loucura’, na concepção da pessoa comum. (Isso, contudo, é diferente quando o autor, ou artista, se torna bem-sucedido. O êxito não e um atestado de sanidade mental?). O próprio fato e que a ideia de igualdade das mulheres era inconcebível para Freud levou-o à sua psicologia da mulher. Acredito que o seu conceito de que metade da humanidade era biológica, anatômica e psiquicamente inferior à outra metade é quase a única ideia, em todo o pensamento de Freud, que parece estar desprovida de qualquer característica que a justifique, por mais tênue que seja, salvo como um retrato de uma atitude masculino-chauvinista” (Fromm, 1980, p. 12-13).
Fromm também afirma que não é apenas o patriarcalismo que mostra o conservadorismo e o caráter de classe de suas concepções. O caráter burguês perpassa toda a sua obra e isso é visto na base dos seus enunciados teóricos e sua maneira de pensar. Fromm diz que seria necessário “um livro inteiro” para analisar as concepções de Freud “sob o prisma da sua origem classista” (Fromm, 1980).
Fromm destaca alguns aspectos importantes desse pensamento classista em alguns exemplos. Em primeiro lugar, Freud postulava, em sua prática e teoria terapêutica, o objetivo do controle das pulsões instintivas pelo ego e superego, o que o aproximava do pensamento teológico medieval; em segundo lugar, a “descrição grotesca” que ele faz das mulheres, apresentadas como narcisistas, incapazes de amar e sexualmente frias, no qual se baseava nas mulheres de “classe média” e generalizava para a “mulher em geral”, mostrando o caráter sexista derivada de sua concepção burguesa de mundo; em terceiro lugar, a sua concepção de amor – Fromm afirma que Freud falava de amor muito mais do que seus seguidores ortodoxos costumam fazer – coisificada, pois se refere ao “amor objetal”, isto é, “amor ao objeto” e “objeto de amor”, no qual a pessoa amada não deixa de ser objeto e passa a ser como um “investimento de capital”. Freud transformou o “amor patriarcal” em “fenômeno humano universal”. Esta talvez seja a chave, afirma Fromm, para a tese do “complexo de Édipo”. O “espantalho do incesto” esconde a “essência do amor masculino”: fixação na mãe que alimenta e simultaneamente é controlada pelo macho (Fromm, 1980).
O autoritarismo de Freud é exemplificado por Fromm em várias oportunidades e sob várias formas. Tomaremos apenas dois exemplos, o caso de Ferenczi (“o exemplo mais drástico da intolerância e autoritarismo de Freud”) e o de Alfred Adler. Ferenczi foi um discípulo e amigo fiel e despretensioso de Freud e somente no fim da sua vida é que propôs uma alteração na técnica psicanalítica, afirmando que o paciente precisava de amor, que não obteve na infância. Isso entrava em franca oposição com a técnica freudiana que pregava a impessoalidade frente ao paciente. Ferenczi encontrou com Freud e fez uma descrição detalhada de sua experiência clínica e dos procedimentos que começou a utilizar e a reação de Freud foi a seguinte:
“O Professor escutou minha exposição com impaciência crescente e finalmente advertiu-me de estar eu palmilhando terreno perigoso e afastando-me fundamentalmente das praxes e técnicas tradicionais da Psicanálise. Ceder assim aos anseios e desejos do paciente – não importa quão autênticos – aumentaria a dependência deste face ao analista. Essa dependência só pode ser destruída pelo alheamento emocional do analista. Nas mãos de analistas inábeis, disse o Professor, meu método podia facilmente produzir a satisfação sexual em vez de ser uma expressão de devotamento paterno ou materno. Essa advertência encerrou a entrevista. Estendi minha mão para uma despedida afetuosa. O Professor virou-me as costas e saiu da sala” (apud Fromm, 1976, p. 74-75).
Fromm também cita a “atitude rancorosa” de Freud em relação ao caso da morte do “dissidente” Alfred Adler, ao responder uma carta em que Arnold Zweig afirma ter ficado sentido com o falecimento de Adler:
“Não entendo sua compaixão por Adler. Para um rapaz judeu nascido num subúrbio de Viena, a morte em Aberdeen é em si mesma uma carreira sem precedente e uma prova de quanto ele tinha progredido. O mundo realmente recompensou-o regiamente por seus serviços ao contradizer a Psicanálise” (apud. Fromm, 1976, p. 76).
Fromm também analisa a identificação de Freud com grandes líderes políticos e suas ambições políticas, bem como o caráter semi-político do movimento psicanalítico, o que reforça a interpretação de suas tendências conservadoras e autoritárias. Apesar de sua aproximação na juventude com ideias e pessoas liberais e socialistas, ele se afasta desta tendência e logo assume posições bastante conservadoras, buscando naturalizar a competição, a acumulação e outras características da sociedade burguesa. Ele retomava o dito de Hobbes: Homo homini lúpus (“o homem é o lobo do homem”) e naturaliza a agressividade e, por conseguinte, a competição:
“Essa agressividade natural do homem conduz a outro traço, dominante na imagem do homem então corrente, sua competitividade inerente. ‘A sociedade civilizada está perpetuamente ameaçada de desintegração por meio dessa hostilidade primária dos homens uns contra os outros’. Essa hostilidade só aparentemente se baseia na desigualdade econômica. “Abolindo a propriedade privada despoja-se o amor humano da agressão de um de seus instrumentos, um instrumento forte sem dúvida, mas por certo não o mais forte’. Qual, então, é a origem mais forte da competitividade humana – ou antes, masculina? É o desejo dos machos de terem acesso irrestrito e ilimitado a todas as fêmeas que possam desejar. Originariamente, é a competição entre pais e filhos pela Mãe; depois, a competição entre os filhos por todas as mulheres acessíveis” (Fromm, 1976, p. 110-111).
Assim, Freud manifesta ser um indivíduo de sua época e classe social[5] e, por isso, mostrou seus limites em sua concepção de psicanálise, o que gerou diversas dissidências, entre elas a de Erich Fromm. Além das divergências expostas, Fromm apresenta outras, derivadas e pontuais, que não poderemos desenvolver no presente trabalho[6].
Repensando Freud e Fromm
Até aqui nos limitamos a descrever alguns dos aspectos principais da crítica de Fromm a Freud. Porém, o bom leitor é aquele que ultrapassa a leitura dogmática, que não toma o escrito como verdade inquestionável e sim como ponto de partida para reflexão e análise crítica. As críticas de Fromm a Freud são corretas em quase todos os aspectos. Porém, Fromm não aprofunda muito a crítica metodológica que faz a Freud, em parte devido suas próprias deficiências metodológicas. Uma crítica metodológica aprofundada da psicanálise freudiana ainda está por ser feita, embora análises de sua “epistemologia” já tenha sido esboçada (Assoun, 1983). Além do materialismo mecanicista identificado por Fromm, e da sua inspiração em diversos pensadores, inclusive Darwin, é necessário perceber outros aspectos, tal como o energetismo (Assoun, 1983) e o papel de Lamarck nesse aspecto (Ritvo, 1992), é preciso uma reconstituição mais profunda das bases metodológicas de Freud.
A crítica do biologismo e pansexualismo é uma das partes mais profícuas da análise de Fromm, mostrando a importância da sociedade na constituição do ser humano e seu universo psíquico. Porém, a forma como faz isto deixa a desejar. Em primeiro lugar, a sua ênfase na cultura é demasiada e assim retira da análise o processo orgânico (“biológico”) e as energias psíquicas e por isso pode confundir repressão cultural com recalcamento psíquico (Viana, 2002; 2010); em segundo lugar, a sua proposta alternativa acaba, devido ao seu culturalismo, não sendo suficiente para explicar determinados fenômenos e nem para compreender o universo psíquico de forma mais ampla.
O problema de Fromm é semelhante ao de Freud, a falta da perspectiva da totalidade no sentido da dialética materialista, como algo concreto. Isto é derivado, entre outras coisas, de sua formação psicanalítica especializada que, apesar da leitura de Marx e outros pensadores, não conseguiu ter uma percepção mais adequada da totalidade da sociedade capitalista e do processo de acumulação de capital e das lutas de classes, elementos ausentes em suas análises. Embora tenha exposto vários aspectos fundamentais da sociabilidade capitalista e da mentalidade burguesa, com suas análises das relações sociais e do que denominou “caráter social”, principalmente em sua trilogia composta pelos livros A Análise do Homem; O Medo à Liberdade e Psicanálise da Sociedade Contemporânea (Fromm, 1978; Fromm, 1981; Fromm, 1976), faltou-lhe a percepção da dinâmica da sociedade capitalista e, por conseguinte, das lutas de classes e do processo de acumulação de capital e suas conseqüências. Nesse sentido, a abordagem de Schaar, segundo a qual o quadro de análise de Fromm não era a sociedade de classe e sim a sociedade de massas, é relativamente correta (Schaar, 1965). Isso, inclusive, obliterou sua concepção de transformação social, que ficou nos limites da sociedade capitalista (Fromm, 1976).
A sua crítica ao conservadorismo, patriarcalismo e autoritarismo de Freud é correta, embora seja perpassada por sua concepção de patriarcalismo, que merece um estudo mais aprofundado que não pretendemos realizar aqui. Porém, independentemente disso e das abstrações envolvidas, é uma crítica correta, já que o sexismo de Freud é por demais evidente e todo o seu modelo analítico, a começar pelo “complexo de Édipo” é uma dedução do universo psíquico humano a partir do sexo masculino, uma abstração reducionista, sem falar de outros problemas relacionados, alguns abordados por Fromm e por questão de espaço não desenvolvemos. O problema do autoritarismo de Freud também é evidente, apesar dos defensores do fundador da psicanálise, como Ernst Jones, justamente criticado por Fromm por sua “ingenuidade psicológica”. O conservadorismo de Freud também é evidente e apenas os leitores dogmáticos é que não percebem isso (Marcuse, 1986) e seus reflexos em sua concepção global, pois somente recortando Freud (assim como ele fez com a realidade) é que ele poderia ser apresentado com um “revolucionário”. A sua ruptura com Reich, por exemplo, tem como um dos principais elementos a divergência política entre ambos[7].
Enfim, as críticas de Fromm a Freud são fundamentais por revelar os limites da psicanálise freudiana, bem como para alertar aos leitores dogmáticos de que suas obras são históricas, determinadas, e não uma verdade indiscutível do psiquismo humano. E, da mesma forma, isso vale para a obra de Fromm, embora tenha cometido menos equívocos que Freud, só pode superar este depois dele ter inovado e desenvolvido teses importantes para compreender o universo psíquico do ser humano. O grande mérito de Freud foi a descoberta do inconsciente e a grande contribuição de Fromm foi a percepção da determinação social e cultural no universo psíquico.
Referências
Assoun, Paul-Laurent. Introdução à Epistemologia Freudiana. Rio de Janeiro, Imago, 1983.
Adler, Alfred. A Ciência da Natureza Humana. São Paulo, Nacional, 1939.
Ansbacher, Heinz e Ansbacher, Rowena. La Psicologia Individual de Alfred Adler. Buenos Aires, Troquel, 1959.
De La Fuente, Ramón. El Pensamiento Vivo de Erich Fromm. México, Fondo de Cultura Económica, 1989.
Evans, Richard. Diálogo com Erich Fromm. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.
Fromm, Erich. A Crise da Psicanálise. Freud, Marx e a Psicologia Social. 2ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
Fromm, Erich. A Descoberta do Inconsciente Social. São Paulo, Manole, 1992.
Fromm, Erich. A Linguagem Esquecida. Uma Introdução ao Entendimento dos Sonhos, Contos de Fadas e Mitos. 8ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
Fromm, Erich. A Missão de Freud. 3ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
Fromm, Erich. Análise do Homem. 10ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1978.
Fromm, Erich. Anatomia da Destrutividade Humana. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.
Fromm, Erich. Grandeza e Limitações no Pensamento de Freud. Rio de Janeiro, Zahar, 1980.
Fromm, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud. 7ª edição, Rio de Janeiro, 1979.
Fromm, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 8a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
Fromm, Erich. O Medo à Liberdade. 13ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
Fromm, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. 8ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
Korsch, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. 8a Edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
Mullahy, Patrick. Édipo: Mito e Complexo. Uma Crítica da Teoria Psicanalítica. 4ª edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
Pannekoek, Anton. Lenin Filosófo. Buenos Aires, Ediciones Pasado y Presente, 1973.
Ritvo, Lucille. A Influência de Darwin Sobre Freud. São Paulo, Imago, 1992.
Robinson, Paul. A Esquerda Freudiana. Wilhelm Reich, Geza Roheim, Herbert Marcuse. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.
Schaar, John. O Mundo de Erich Fromm. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.
Silveira, Nise da. Jung – Vida e Obra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981.
Thompson, Clara. Evolução da Psicanálise. 3ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
Viana, Nildo. Erich Fromm e a Renovação da Psicanálise. Revista Espaço Livre. (no prelo).
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Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.


[1] Sem dúvida, vários outros pensadores inspiraram Fromm, a maioria sendo admitido por ele e alguns não explicitados por ele. Este é o caso de Alfred Adler: “As semelhanças de Horney e Erich Fromm com Adler foram assinaladas detalhadamente em um trabalho de Walter T. James: ‘Adler deve ser considerado como um dos antecedentes mais importantes de Horney e Fromm... A maior parte das ideias de Horney e Fromm são devidas a Adler por sua aguda consciência da realidade, da influência do ambiente total sobre a personalidade. A insistência constante de Freud sobre a etiologia biológica fazia de toda ‘psicologia social’ real uma impossibilidade, exceto a base do simbolismo sexual... Algumas das conclusões de Adler são partes indispensáveis das psicologias sociais de Horney e Fromm” (Ansbacher e Ansbacher, 1959, p. 47).
[2] Fromm distinguia esse materialismo burguês do materialismo histórico de Marx, inclusive criticando a deformação do pensamento deste último (Fromm, 1979) e mostrando que a concepção positivista, por exemplo, em Lênin e Bukhárin, tomaram conta deste “marxismo” deformado (Fromm, 1983). A substituição do materialismo histórico pelo materialismo burguês teve como principal ideólogo Lênin (), que recebeu as críticas de Korsch (1977) e Pannekoek (1973), apesar de ser a tendência dominante na interpretação de Marx até os dias de hoje.
[3] Nem aceitava a evolução posterior da concepção freudiana que postulou a existência de um “instinto de morte” (apud Evans, 1967; Fromm, 1975),
[4] Obviamente que a análise de Fromm sobre este aspecto é bastante relevante e possui aspectos importantes, apesar de também possuir pontos problemáticos. No entanto, aqui não será possível realizar uma análise mais abrangente de sua abordagem, o que deixaremos para outra oportunidade. Também é necessário destacar a preferência de Fromm pelo princípio matriarcal e também sua consideração que é necessário uma síntese entre os dois princípios.
[5] “Na verdade, existem poucos pensadores que sejam ‘radicais’, no sentido de transcenderem o pensamento de sua classe. Freud não foi um deles” (Fromm, 1980, p. 13).
[6] Um elemento que poderia ser acrescentado é o pessimismo de Freud: “A visão de Freud é completamente pessimista. De seu ponto de vista, a sociedade, por sua própria natureza, força o homem a recalcar sua agressividade inata, cada vez mais. A previsão para o futuro é que, quanto mais civilizado o homem se torna, tanto mais potencialmente destrutivo ficará” (Thompson, 1976, p. 134). Fromm já afirma que Freud era um típico representante do iluminismo e, portanto, um otimista, até a ocorrência da Primeira Guerra Mundial, a qual promoveu sua mudança e transformação em pessimista (apud. Evans, 1967).
[7] Robinson coloca que o postulado de um “instinto de morte” por Freud na última fase do seu pensamento foi o estopim que provocou a ruptura com Reich: “Assim, Reich, tal como Adler antes dele, foi forçado a separar-se da psicanálise por razões tanto políticas como intelectuais. Freud também estava plenamente cônscio da natureza ideológica da sua divergência com Reich. Declarou, da maneira mais injusta, que o artigo de Reich sobre masoquismo ‘culminou na afirmação absurda de que aquilo a que chamamos o instinto de morte é um produto do sistema capitalista’. Freud chegou mesmo ao ponto de declarar que ‘The Masochistic Charater’ tinha sido escrito ‘ao serviço do Partido Comunista’”(Robinson, 1971, p. 30)

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