sexta-feira, 12 de abril de 2019

Para entender a alienação: Marx, Fromm e Marcuse


Para entender a alienação: Marx, Fromm e Marcuse


Maria Angélica Peixoto


Resumo: O artigo aborda a interpretação de Marcuse e Fromm acerca do conceito de alienação, discutindo as divergências e convergências do pensamento destes teóricos, bem como compara a formulação do conceito de alienação por Marx com a apresentada por eles. O trabalho ressalta ainda as contribuições de Marcuse e Fromm para o pensamento social contemporâneo, pois ao tentarem resgatar o conceito de alienação em Marx, proporcionam elementos importantes para se repensar a problemática em torno deste conceito.
Palavras-chave: alienação, trabalho, idolatria, materialismo histórico.

Abstract: The article approaches the interpretation of Marcuse and Fromm concerning the alienation concept, discussing the divergences and convergences of the thought of these theoretical ones, as well as it compares the formulation of the alienation concept for Marx with introduced your by them. The work still points out the contributions of Marcuse and Fromm for the contemporary social thought, because to the they try to rescue the alienation concept in Marx, they provide important elements to rethink the problem around this concept.
Word-key: alienation, work, idolatry, historical materialism.

Este trabalho objetiva apresentar o conceito de alienação tal como visto por Herbert Marcuse e Erich Fromm. Abordaremos as possíveis convergências e divergências destes autores em relação a este tema. Antes de tudo, apresentaremos o conceito de alienação em Marx, já que a discussão em torno deste conceito pelos dois autores parte desta discussão. Assim, é importante comparar o conceito de alienação tal como desenvolvido por Marx com a abordagem destes dois pensadores. Depois de explicitar como Fromm e Marcuse interpretam o conceito marxista de alienação, apresentaremos nosso ponto de vista sobre estas abordagens. Vale esclarecer que este trabalho não tem a intenção de descartar as contribuições de Marcuse e Fromm. Ao contrário, estamos certos da importância de tais autores e seus estudos e nossa intenção aqui é somente aprofundar a questão e apresentá-la tal como a interpretamos. Para tanto, as divergências surgem e para o bem do debate são sempre bem recebidas. Enfim, são estas as intenções do nosso trabalho.

O Conceito de Alienação em Marx

Para Marx (1983), a alienação humana está no fato de haver no processo de produção uma relação que impede e constrange a realização do trabalho como “objetivação”, ou seja, como realização da natureza humana. Mas antes de tudo devemos perguntar: o que é a alienação? Segundo Marx, a alienação surge com a divisão social do trabalho e com esta divisão surge a separação entre os que dirigem e os que executam o processo de trabalho. Há, pois, nesta relação, a instauração da alienação. O trabalhador é constrangido a atender suas necessidades mais imediatas, tais como: comer, beber, vestir, etc., se não o fizer porá em risco sua própria existência. Ao fazer de sua capacidade de trabalho um meio para atingir determinados fins, a sua atividade deixa de ser uma atividade livre (auto-atividade) e torna-se trabalho alienado.
Por conseguinte, o trabalhador confronta-se com o produto de seu trabalho como algo “estranho e hostil”, sintoma de que seu trabalho é trabalho alienado. Como dissemos acima, esta alienação do trabalhador se dá no próprio processo de trabalho. A conseqüência disto é que o produto do trabalho confronta-se com quem o criou: o trabalhador. Este processo se concretiza na medida em que o trabalhador ao se separar do produto do seu trabalho, outro que não o trabalhador se apropriará dele. Ao se apropriar do trabalho do trabalhador, o não-trabalhador criará as condições necessárias para a efetivação da propriedade privada.
Marx, ao analisar a economia política, observa que esta toma a propriedade como a responsável pela acumulação. Ao contrário, o que Marx quer nos fazer ver é que é no próprio processo de trabalho que se cria as condições para tal acumulação. Sendo, pois, a propriedade privada uma mera conseqüência do processo de trabalho. É então na esfera da produção que o trabalho alienado se efetiva, tornando possível a apropriação por parte do não-trabalhador dos produtos do trabalho do trabalhador. É justamente neste processo que se engendra a alienação. Ela passa da esfera da produção para todas as demais esferas da sociedade, se generalizando. A alienação contamina assim todas as outras relações sociais. Marx aponta como única saída a emancipação por parte dos próprios trabalhadores deste processo que gera o trabalho alienado. Só o trabalhador libertando-se, libertará toda a humanidade de sua alienação. Quando a alienação não fizer parte do processo de trabalho, a humanidade estará livre dela e poderá, então, se reconhecer como ente-espécie.

Fromm: Alienação e Idolatria

Fromm inicia o capítulo dedicado a alienação com a seguinte frase:
“O conceito do homem ativo e produtivo, que compreende e controla o mundo objetivo com suas próprias faculdades, não pode ser plenamente entendido sem o conceito de negação da produtividade: a alienação” (Fromm, 1983, p. 50).
A partir disto se coloca a questão: o que é alienação para Fromm? Alienação é o homem estar separado (alheado) daquilo que criou. Sendo que o objeto criado pelo homem muitas vezes se volta contra ele próprio. Isto o impede de vivenciar o mundo como ser autônomo. Ao contrário, a sua relação com o mundo externo e com ele próprio é uma relação passiva, receptiva. Alienação, então, nada mais é do que a negação da produtividade, ou seja, da capacidade criadora do homem.
Erich Fromm vai nos mostrar que o conceito de alienação foi pela primeira vez expresso no Ocidente pelo conceito de idolatria, sendo que este aparece no Antigo Testamento. O conceito de idolatria expressa o quanto o indivíduo está perdido de si mesmo. A vida se petrifica na adoração de ídolos. Ao ídolo entrega-se todo o potencial humano, sendo criação humana, acaba finalmente por sujeitar o próprio criador. Ao adorar aquilo que criou, o criador torna-se, então, vazio de vida. Fromm define o conceito de idolatria da seguinte forma:
“A essência do que era chamado ‘idolatria’ pelos antigos profetas não está em o homem adorar muitos deuses em vez de um único. Está em os ídolos serem a obra das mãos do próprio homem eles são coisas, e no entanto o homem curva-se ante elas e as reverencia; adora aquilo que ele mesmo criou. Ao fazê-lo ele se transforma em coisa. Transfere às coisas de sua criação os atributos de sua vida, e, em vez de experenciar-se como pessoa criadora, só entra em contato consigo mesmo através da adoração do ídolo. Ele se alheou às forças de sua própria vida, à riqueza de suas próprias potencialidades, e só entra em contato consigo mesmo de maneira indireta, e submetendo-se à vida congelada nos ídolos” (Fromm, 1983, p. 51).
Segundo Fromm, os ídolos são por vezes, um Deus, ora o Estado, a Igreja, posses, etc. É claro que a pessoa idólatra muda o objeto de sua adoração, mas isto dependerá de suas motivações, e tais motivações não possuem apenas um sentido religioso, há por detrás dela vários outros sentidos. Mais adiante, Fromm irá apresentar o conceito de alienação tal como visto por Marx:
Para Marx, o processo de alienação manifesta-se no trabalho e na divisão do trabalho. O trabalho é, para ele, o relacionamento ativo do homem com a natureza, a criação do próprio homem (...). Com a expansão da propriedade privada e da divisão do trabalho, todavia, o trabalho perde sua característica de expressão do poder do homem; o trabalho e seus produtos assumem uma existência à parte do homem, de sua vontade e de seu planejamento (Fromm, 1983, p. 53).
Ao apontar a divisão do trabalho como uma das causas principais que levam o homem à alienação na visão marxista, Fromm segue o raciocínio de Marx apontando que não é através de uma distribuição igualitária de renda que se supera a alienação, ao contrário, é com a abolição do modo de produção capitalista que se pode superá-la.
O trabalho alienado não só escraviza o trabalhador como também o capitalista. Para Fromm tal escravização é feita por “coisas e circunstâncias” criadas pelos próprios homens. Segundo Fromm, Marx ressalta que é na sociedade capitalista que a alienação atinge o seu mais alto grau, embora ela tornou-se presente na história da humanidade a partir do momento em que se instaurou a divisão social do trabalho e a separação execução e direção: de um lado, os trabalhadores, que executam o trabalho; de outro, os que dirigem o processo de trabalho.
No capitalismo é que se pode sentir mais cruelmente a alienação. O operário ao produzir, produz não para si, mas para o capitalista que é o que dirige o processo de trabalho. É nesta relação que a humanidade se perde como “ente-espécie” e se coloca em inferioridade em relação aos animais. Toda servidão deriva desta relação entre trabalhador e não-trabalhador. E a emancipação é obra dos próprios trabalhadores que libertando-se libertam a humanidade inteira.
Fromm ressalta a importância de percebermos que no processo de trabalho alienado “não só o mundo das coisas que se torna superior ao homem, mas também as circunstâncias sociais e políticas por ele criadas se tornam seus senhores” (Fromm, 1983, p. 57). Fromm, em consonância com Marx, aponta a possibilidade de generalização da alienação. Ela inicia no processo de trabalho e se generaliza por toda parte. Com isto, vimos que “a alienação conduz à perversão de todos os valores”. A alienação torna cada esfera da vida (econômica, moral) separada, desmembrada uma da outra. Ele alude ao fato de a alienação ser cada vez maior em segmentos da sociedade que manipulam símbolos e homens. Afirma que Marx não previu o quanto a alienação se expandiria, contaminando assim, toda a vida social. Aponta, finalmente, o nível de coisificação das relações humanas e conclui dizendo que a humanidade se tornou prisioneira das coisas que criou, tornando a si própria mercadoria, coisa vendável. Enfim, no essencial, estas são as contribuições de Erich Fromm ao estudo da questão da alienação.

Marcuse: Alienação e Materialismo Histórico

No capítulo “Novas Fontes Para a Fundamentação do Materialismo Histórico”, em seu livro Idéias Para Uma Teoria Crítica da Sociedade”, Marcuse se baseia na crítica de Marx, no momento em que este último busca a base para uma “crítica e fundamentação filosóficas da Economia Política no sentido de uma teoria da revolução” (Marcuse, 1981, p. 9), para apresentar sua discussão sobre a questão da alienação.
Marcuse procura nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx elementos que possibilitem a discussão das categorias fundamentais da teoria marxista, a saber: trabalho, objetivação, alienação, superação, propriedade. Embora o objetivo desta parte de nosso trabalho apresente como principal meta a definição de alienação na visão de Marcuse, não podemos deixar de reconhecer que para ele as categorias fundamentais da teoria de Marx estão implicadas entre si, sendo que o conceito de alienação passa necessariamente pelas demais categorias (citadas acima), sem as quais não seria possível delinearmos o conceito de alienação na concepção de Marx. Neste sentido, o conceito de trabalho será tomado aqui como o determinante. Perguntamos, então: como é definida a categoria trabalho? E mais: porque tal categoria fornece os elementos necessários para a compreensão das demais?
Marcuse leva o leitor a compreender a importância de se distinguir, tal como fez Marx, a “economia política tradicional” da “economia política socialista”. A primeira, oculta a realidade social alienando e desvalorando o homem; e a segunda é a única capaz de desvendar as “leis aparentemente inalteráveis” da sociedade. É aqui que a economia política socialista toma como fato a “exteriorização” e a “alienação”, enquanto a tradicional não aceita tais conceitos como fatos. Ao operar a “crítica positiva” da economia política, Marx afirma que a alienação e a exteriorização fazem parte da economia política tradicional. A seguir, ele dividirá inicialmente a análise em três conceitos: “salário do trabalho”, “lucro do capital” e “renda da terra”. No entanto, Marcuse vai nos mostrar logo adiante que Marx vai romper com estes três conceitos e apresentar um novo conceito o de trabalho alienado. É então que Marcuse vai apresentar o fato novo descoberto por Marx:
O conceito de trabalho, portanto, em seu desenvolvimento rompe o âmbito delineado pela colocação do problema; sob este conceito prossegue a discussão que, então, descobre um novo ‘fato’ que se transforma em base da revolução comunista. A interpretação deve, portanto, fixar-se no conceito marxista de trabalho (Marcuse, 1981, p. 14).
Percebemos, então, que para Marcuse, o conceito marxista de trabalho é a chave para se interpretar os Manuscritos.
Quando Marx descreve a forma de trabalho e a forma de existência do trabalhador existentes na sociedade capitalista: completa separação em relação aos meios de produção e ao produto do trabalho transformado em mercadoria, oscilação dos salários, do trabalho em torno do mínimo físico de subsistência, desconexão entre o trabalho realizado como ‘trabalho forçado’ a serviço do capitalista e a ‘realidade humana’ do trabalhador, então todas essas características podem apresentar-se como simples fatos da Economia Política. Esta impressão parece ser confirmada pelo fato de que Marx retira ‘por meio da análise do conceito de trabalho exteriorizado’ o conceito de ‘propriedade privada’, ou seja, o conceito de Economia Política (Marcuse, 1981, p. 14).
Marcuse, ao analisar a “caracterização do trabalho exteriorizado” percebe que o que caracteriza tal trabalho não é somente “uma situação econômica” mas uma alienação e desvalorização da vida humana, que leva a uma “distorção” de fatos da existência humana. Neste contexto, a análise de Marcuse tenta resgatar a importância de se tomar o homem como tal e não como mero “sujeito econômico”. Tal resgate implica em superar a propriedade privada nela o homem é tomado como objeto. Aqui há uma conexão positiva entre a essência humana e filosofia, esta última fornece as bases filosóficas para a superação da alienação.
Desta forma podemos compreender o conceito marxista de trabalho, que não é apenas um “fato econômico” ou um conceito de economia política burguesa e sim a “essência humana”, ou seja, o que caracteriza as “forças essenciais humanas”. Marcuse, mais adiante, após definir a categoria trabalho, descreve o desenvolvimento histórico da humanidade, e vimos que nessa concepção de trabalho já estava lançado as possibilidades de existência do trabalho alienado. A partir do momento em que o trabalhador na sua determinidade se separa do produto que criou, outro se apropriará dele, ou seja, o não-trabalhador. Esta separação do trabalhador do objeto criado por ele ocasiona uma divisão do trabalho. Não se trata apenas do fato, verdadeiro, de que o trabalhador perca o produto do seu próprio trabalho, mas sim da própria transformação do trabalho em mercadoria, em algo que é vendável. Segundo Marcuse,
Assim o trabalho, em vez de uma manifestação do todo do homem, se transforma em ‘exteriorização’, em vez de plena e livre realização do homem se transforma em total ‘desrealização’: ele apresenta de tal forma como desrealização que o trabalhador é desrealizado até o estado de inanição (Marcuse, 1981, p. 17).
Como, então, Marcuse irá definir alienação? Ele a define como sendo uma determinada relação do trabalhador com o objeto de seu trabalho, é, pois, nesta relação que se “funda o fato da alienação e coisificação”. Assim, a exteriorização do trabalho apresenta uma “destruição” e “alienação” da essência humana. O trabalho é o espaço da realização autêntica do homem, mas não o trabalho alienado. Para expressar esta realização autêntica do homem no trabalho, Marcuse fala em objetivação. Ele considera que, para Marx, o homem é um “ser genérico”, “universal”. O “gênero” de um ser é a sua raiz, sua essência. Esta essência é comum a todos que pertencem a este gênero. Para Marcuse,
Ele pode relacionar-se livremente com todo ser; ele não está limitado pela determinação fatual momentânea do ser e por sua relação direta com essa determinação; essência de qualquer determinação direta factual; ele pode reconhecer e apreender as possibilidades que existem em cada ser; ele pode esgotar, transformar, construir, dirigir (‘produzir’) todo ser segundo esta ‘medida imanente’. O trabalho como ‘atividade vital’ especificamente humana se baseia nesse ‘ser genérico’ do homem: o trabalho pressupõe o poder relacionar-se com o ‘universal’ dos objetos e com as possibilidades neles imanentes. E no poder relacionar-se com o próprio gênero se baseia a liberdade especificamente humana: a auto-realização, ‘autoprodução’ do homem. Por meio do conceito de trabalho livre (do livre produzir), a relação do homem como ser genérico com seus objetos se torna mais clara (Marcuse, 1981, p. 22-23).
Neste sentido, o trabalho possui duas faces: é ao mesmo tempo, realização e destruição da essência humana. Isto só pode ser explicado pela situação histórica concreta do homem, onde se dá a inter-relação entre “essência” e “facticidade”. Não se trata de essência humana abstrata que está acima da história e sim algo que se determina na história e somente nela. Daí a possibilidade do trabalho passar de “realização” para “desrealização” humana. Houve, no processo histórico da humanidade, uma separação entre essência e existência. A existência deixa de ser um meio para manifestação de sua essência para que a essência seja um meio para manter a existência física do homem. Assim, se estabelece a alienação do trabalho. Marcuse conclui que:
Se, desse modo, a essência e a existência se separam e sua reunificação como realização factual é a tarefa propriamente livre da prática humana, então, quando a facticidade chegou até a inteira inversão da essência humana, a superação radical dessa facticidade é a tarefa pura e simplesmente. Exatamente a visão certeira da essência do homem se transforma em impulso para a fundamentação da revolução radical: o fato de que na situação factual do capitalismo não se trata apenas de uma crise econômica ou política, e sim de uma catástrofe da essência humana esta concepção condena toda e qualquer reforma econômica ou política ao fracasso e exige a superação catastrófica da situação factual por meio da revolução total. Somente a partir de uma fundamentação correta, cuja solidez não possa ser abalada por meio de argumentos econômicos ou políticos, é que surge a questão das condições históricas e dos portadores da revolução: a teoria da luta de classes e da ditadura do proletariado. Toda crítica que se ocupa dessa teoria sem discutir seu fundamento próprio não atinge seu objeto (Marcuse, 1981, p. 36-37).
Qual é a origem da alienação? Segundo Marcuse a demonstração disto é tarefa da análise econômico-histórica. Para Marx, tal origem se encontra na divisão do trabalho. Isto deriva da concepção de Marx de que o próprio trabalhador produz o domínio capitalista, pois a auto-alienação do homem de si mesmo se dá na relação com outros homens. Segundo Marcuse,
O contexto em que essa afirmação se encontra já é conhecido: o relacionamento do homem com o objeto de seu trabalho é imediatamente seu relacionamento com outros homens, com os quais ele tem esse objeto e a si mesmo como ser social (Marcuse, 1981, p. 45).
Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, é porque pertence a outros homens que não o trabalhador, então, surge a figura do não-trabalhador. Através da alienação, o trabalhador se relaciona com sua própria atividade como “atividade não-livre”, sob o domínio e a coerção de outro, o não-trabalhador. Marcuse afirma que:
Não se trata de que existe primeiro um ‘senhor’ que submete um outro homem, exterioriza dele o seu trabalho, transforma-o em um simples trabalhador e a si mesmo em não-trabalhador; mas tampouco se trata de que a relação de dominação e servidão seja mera conseqüência da exteriorização do trabalho, pois a exteriorização do trabalho, como alienação da própria atividade e de seu objeto, em si mesma já é a relação entre trabalhador e não-trabalhador, dominação e servidão (Marcuse, 1981, p. 45).

Marcuse, Fromm e o Conceito Marxista de Alienação

Podemos dizer que Fromm e Marcuse divergem na concepção do que vem a ser alienação. Fromm define alienação como sendo a “negação da produtividade” humana, ou seja, da capacidade criadora do homem. Ele também coloca tal conceito como sinônimo de idolatria. Alienação e idolatria, então, são, na concepção de Fromm, a mesma coisa. Tal questão abre possibilidades para questionamentos: idolatria não seria apenas uma conseqüência da alienação e não a própria alienação?
Apesar de Fromm concordar com Marx, no que concerne a questão da origem da alienação, ou seja, na idéia de que a alienação surge com o aparecimento da divisão social do trabalho, ele tende a definir a alienação como sendo um processo que ocorre na relação do homem com o produto de seu trabalho, tal como visto pela consciência humana, daí sua identificação entre alienação e idolatria. Mas, se retomarmos a definição de alienação fornecida por Marx, veremos que as duas definições são contraditórias. Para Marx, é no trabalho (atividade vital humana, característica da essência humana) que ocorre a alienação. É por isso que ele fala em trabalho alienado. Este se caracteriza por uma determinada relação social onde o não-trabalhador dirige o processo de trabalho do trabalhador.
A relação do trabalhador com o produto do seu trabalho, bem como a visão que ele possui deste produto, é uma conseqüência daquela relação anterior. Se o trabalhador não dirige o seu processo de trabalho, então ele também não irá ter o domínio sobre este seu produto e por isso terá um “estranhamento” em relação a ele. Portanto, são três processos inter-relacionados: relação homem/trabalho; relação homem/produto do trabalho; relação da consciência humana com o produto do trabalho. Marx utiliza a expressão “alienação” para expressar estas três relações (Viana, 1995).
Porém, deve-se reconhecer que ele utiliza esta expressão em vários sentidos, tanto no sentido tradicional fornecido pela filosofia alemã (ligado à questão da consciência) quanto no sentido novo fornecido por ele (trabalho alienado), que, às vezes, para distinguir de outros sentidos, ele chama de “auto-alienação”. Para a relação do trabalhador com o produto do trabalho e o não-trabalhador Marx cunharia a expressão exploração e para relação do trabalhador com o produto de seu trabalho na consciência, ele adotaria o conceito de fetichismo (Viana, 1995; Marx, 1988).
Fromm, assim, confunde fetichismo (idolatria) com alienação, pois a idolatria é o resultado da alienação e a alienação é o próprio processo. Fromm reconhece a alienação no trabalho (“negação da produtividade humana”) mas acaba deslizando sua interpretação para a consciência do trabalhador a respeito do produto do trabalho e este é o seu grande equívoco.
E a interpretação de Marcuse? Ele acaba caindo na mesma ambigüidade que Fromm, pois, inicialmente, ele define a alienação como uma determinada relação entre o trabalhador com o objeto do seu trabalho (exploração) e posteriormente como sendo a própria atividade, a relação do trabalhador com seu trabalho caracterizada pela dominação do não-trabalhador sobre o seu processo. Neste sentido, Marcuse comete equívocos semelhantes aos de Fromm.
Quais são as divergências e convergências entre Fromm e Marcuse? A principal convergência entre ambos está na definição do conceito de trabalho e nisto eles estão de pleno acordo com Marx: o trabalho, em sentido amplo, é a essência humana[1]. O homem humaniza o mundo através de seu trabalho sobre ele e assim revela sua essência e manifesta suas capacidades produtivas. Entretanto, em determinadas condições sociais surge o trabalho alienado, que é a negação desta essência. Portanto, tanto Fromm quanto Marcuse reconhecem o caráter dual do trabalho na história: pode ser objetivação ou alienação.
Mas também existe divergência entre ambos. Marcuse faz uma abordagem excessivamente filosófica dos Manuscritos, enquanto que Fromm coloca sua interpretação em termos históricos-concretos, ou seja, num sentido mais próximo de Marx. Marcuse não compreende a ruptura efetuada por Marx com a filosofia, (que culminará com a formação do “socialismo científico”) e faz uma interpretação que não sai do campo filosófico e quando isto se faz necessário pela própria exigência do texto de Marx (por exemplo, o problema da origem da alienação) Marcuse diz que se trata de uma análise histórico-econômica que ele não irá abordar. Neste sentido, Fromm avança mais que Marcuse. Assim, fica claro os limites da “filosofia da psicanálise” de Marcuse, já discutidas por Viana, uma das razões das divergências entre os dois pensadores (Viana, 2008).
Outra divergência se encontra na ênfase que cada um coloca na definição de alienação. Para Fromm a alienação se realiza no processo de trabalho e derivado daí a visão do trabalhador a respeito do produto do seu trabalho (em termos marxistas: alienação e fetichismo) e Marcuse observa a alienação no processo de trabalho e na ralação entre o trabalhador e o produto do trabalho (em termos marxistas: alienação e exploração ou “alheamento”). Nesta parte é Marcuse que avança mais do que Fromm. A razão disto se encontra no fato de que Marcuse focaliza as relações sociais como locus da alienação, enquanto que Fromm ao confundir alienação e fetichismo abre a possibilidade para a transformação da questão da alienação em um “problema da consciência”, sendo este um procedimento da filosofia idealista em visível contradição com a concepção materialista de Marx.
Por fim, devemos reconhecer os méritos tanto de Fromm quanto de Marcuse. Ambos buscam interpretar e compreender os Manuscritos de Marx, que são considerados por muitos como escritos “pré-marxistas” e “pré-científicos” (Godelier, 1969). Eles também esclarecem importantes questões sobre os Manuscritos e, além disso, recuperam o significado autêntico do conceito marxista de trabalho. São, portanto, duas contribuições importantes para o pensamento social contemporâneo, apesar de suas deficiências no processo de análise do conceito de alienação.
Referências bibliográficas
FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 8a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
GODELIER, Maurice. Racionalidade e Irracionalidade na Economia. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969.
MARCUSE, Herbert. Idéias Para Uma Teoria Crítica da Sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 8a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.
VIANA, Nildo. Alienação e Fetichismo em Marx. In: Revista Fragmentos de Cultura. Ano 05, No 11, maio de 1995.
VIANA, Nildo. Marcuse e a Crítica ao Neofreudismo. In: Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
VIANA, Nildo. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007.



[1] Claro que acrescentando que tal trabalho é realizado através da cooperação, o que faz a sociabilidade ser parte da essência humana (Viana, 2007).

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