Para entender a alienação: Marx, Fromm e Marcuse
Resumo: O artigo aborda a interpretação de Marcuse e Fromm acerca do
conceito de alienação, discutindo as divergências e convergências do pensamento
destes teóricos, bem como compara a formulação do conceito de alienação por
Marx com a apresentada por eles. O trabalho ressalta ainda as contribuições de
Marcuse e Fromm para o pensamento social contemporâneo, pois ao tentarem
resgatar o conceito de alienação em Marx, proporcionam elementos importantes
para se repensar a problemática em torno deste conceito.
Palavras-chave:
alienação, trabalho, idolatria, materialismo histórico.
Abstract: The
article approaches the interpretation of Marcuse and Fromm concerning the
alienation concept, discussing the divergences and convergences of the thought
of these theoretical ones, as well as it compares the formulation of the
alienation concept for Marx with introduced your by them. The work still points
out the contributions of Marcuse and Fromm for the contemporary social thought,
because to the they try to rescue the alienation concept in Marx, they provide
important elements to rethink the problem around this concept.
Word-key: alienation, work, idolatry, historical
materialism.
Este
trabalho objetiva apresentar o conceito de alienação tal como visto por Herbert
Marcuse e Erich Fromm. Abordaremos as possíveis convergências e divergências
destes autores em relação a este tema. Antes de tudo, apresentaremos o conceito
de alienação em Marx, já que a discussão em torno deste conceito pelos dois
autores parte desta discussão. Assim, é importante comparar o conceito de
alienação tal como desenvolvido por Marx com a abordagem destes dois
pensadores. Depois de explicitar como Fromm e Marcuse interpretam o conceito
marxista de alienação, apresentaremos nosso ponto de vista sobre estas
abordagens. Vale esclarecer que este trabalho não tem a intenção de descartar
as contribuições de Marcuse e Fromm. Ao contrário, estamos certos da
importância de tais autores e seus estudos e nossa intenção aqui é somente
aprofundar a questão e apresentá-la tal como a interpretamos. Para tanto, as
divergências surgem e para o bem do debate são sempre bem recebidas. Enfim, são
estas as intenções do nosso trabalho.
O
Conceito de Alienação em Marx
Para
Marx (1983), a alienação humana está no fato de haver no processo de produção
uma relação que impede e constrange a realização do trabalho como
“objetivação”, ou seja, como realização da natureza humana. Mas antes de tudo
devemos perguntar: o que é a alienação? Segundo Marx, a alienação surge com a
divisão social do trabalho e com esta divisão surge a separação entre os que
dirigem e os que executam o processo de trabalho. Há, pois, nesta relação, a
instauração da alienação. O trabalhador é constrangido a atender suas
necessidades mais imediatas, tais como: comer, beber, vestir, etc., se não o
fizer porá em risco sua própria existência. Ao fazer de sua capacidade de
trabalho um meio para atingir determinados fins, a sua atividade deixa de ser
uma atividade livre (auto-atividade) e torna-se trabalho alienado.
Por
conseguinte, o trabalhador confronta-se com o produto de seu trabalho como algo
“estranho e hostil”, sintoma de que seu trabalho é trabalho alienado. Como
dissemos acima, esta alienação do trabalhador se dá no próprio processo de
trabalho. A conseqüência disto é que o produto do trabalho confronta-se com
quem o criou: o trabalhador. Este processo se concretiza na medida em que o
trabalhador ao se separar do produto do seu trabalho, outro que não o trabalhador
se apropriará dele. Ao se apropriar do trabalho do trabalhador, o
não-trabalhador criará as condições necessárias para a efetivação da
propriedade privada.
Marx,
ao analisar a economia política, observa que esta toma a propriedade como a
responsável pela acumulação. Ao contrário, o que Marx quer nos fazer ver é que
é no próprio processo de trabalho que se cria as condições para tal acumulação.
Sendo, pois, a propriedade privada uma mera conseqüência do processo de
trabalho. É então na esfera da produção que o trabalho alienado se efetiva,
tornando possível a apropriação por parte do não-trabalhador dos produtos do
trabalho do trabalhador. É justamente neste processo que se engendra a
alienação. Ela passa da esfera da produção para todas as demais esferas da
sociedade, se generalizando. A alienação contamina assim todas as outras
relações sociais. Marx aponta como única saída a emancipação por parte dos
próprios trabalhadores deste processo que gera o trabalho alienado. Só o
trabalhador libertando-se, libertará toda a humanidade de sua alienação. Quando
a alienação não fizer parte do processo de trabalho, a humanidade estará livre
dela e poderá, então, se reconhecer como ente-espécie.
Fromm:
Alienação e Idolatria
Fromm
inicia o capítulo dedicado a alienação com a seguinte frase:
“O conceito do homem ativo e produtivo,
que compreende e controla o mundo objetivo com suas próprias faculdades, não
pode ser plenamente entendido sem o conceito de negação da produtividade: a
alienação” (Fromm, 1983, p. 50).
A
partir disto se coloca a questão: o que é alienação para Fromm? Alienação é o
homem estar separado (alheado) daquilo que criou. Sendo que o objeto criado
pelo homem muitas vezes se volta contra ele próprio. Isto o impede de vivenciar
o mundo como ser autônomo. Ao contrário, a sua relação com o mundo externo e
com ele próprio é uma relação passiva, receptiva. Alienação, então, nada mais é
do que a negação da produtividade, ou seja, da capacidade criadora do homem.
Erich
Fromm vai nos mostrar que o conceito de alienação foi pela primeira vez
expresso no Ocidente pelo conceito de idolatria, sendo que este aparece no
Antigo Testamento. O conceito de idolatria expressa o quanto o indivíduo está
perdido de si mesmo. A vida se petrifica na adoração de ídolos. Ao ídolo
entrega-se todo o potencial humano, sendo criação humana, acaba finalmente por
sujeitar o próprio criador. Ao adorar aquilo que criou, o criador torna-se,
então, vazio de vida. Fromm define o conceito de idolatria da seguinte forma:
“A
essência do que era chamado ‘idolatria’ pelos antigos profetas não está em o
homem adorar muitos deuses em vez de um único. Está em os ídolos serem a obra
das mãos do próprio homem —
eles são coisas, e no entanto o homem curva-se ante elas e as reverencia; adora
aquilo que ele mesmo criou. Ao fazê-lo ele se transforma em coisa. Transfere às
coisas de sua criação os atributos de sua vida, e, em vez de experenciar-se
como pessoa criadora, só entra em contato consigo mesmo através da adoração do
ídolo. Ele se alheou às forças de sua própria vida, à riqueza de suas próprias
potencialidades, e só entra em contato consigo mesmo de maneira indireta, e
submetendo-se à vida congelada nos ídolos” (Fromm, 1983, p. 51).
Segundo
Fromm, os ídolos são por vezes, um Deus, ora o Estado, a Igreja, posses, etc. É
claro que a pessoa idólatra muda o objeto de sua adoração, mas isto dependerá
de suas motivações, e tais motivações não possuem apenas um sentido religioso,
há por detrás dela vários outros sentidos. Mais adiante, Fromm irá apresentar o
conceito de alienação tal como visto por Marx:
Para
Marx, o processo de alienação manifesta-se no trabalho e na divisão do
trabalho. O trabalho é, para ele, o relacionamento ativo do homem com a
natureza, a criação do próprio homem (...). Com a expansão da propriedade
privada e da divisão do trabalho, todavia, o trabalho perde sua característica
de expressão do poder do homem; o trabalho e seus produtos assumem uma
existência à parte do homem, de sua vontade e de seu planejamento (Fromm, 1983,
p. 53).
Ao
apontar a divisão do trabalho como uma das causas principais que levam o homem
à alienação na visão marxista, Fromm segue o raciocínio de Marx apontando que
não é através de uma distribuição igualitária de renda que se supera a
alienação, ao contrário, é com a abolição do modo de produção capitalista que
se pode superá-la.
O
trabalho alienado não só escraviza o trabalhador como também o capitalista.
Para Fromm tal escravização é feita por “coisas e circunstâncias” criadas pelos
próprios homens. Segundo Fromm, Marx ressalta que é na sociedade capitalista
que a alienação atinge o seu mais alto grau, embora ela tornou-se presente na
história da humanidade a partir do momento em que se instaurou a divisão social
do trabalho e a separação execução e direção: de um lado, os trabalhadores, que
executam o trabalho; de outro, os que dirigem o processo de trabalho.
No
capitalismo é que se pode sentir mais cruelmente a alienação. O operário ao
produzir, produz não para si, mas para o capitalista que é o que dirige o
processo de trabalho. É nesta relação que a humanidade se perde como
“ente-espécie” e se coloca em inferioridade em relação aos animais. Toda
servidão deriva desta relação entre trabalhador e não-trabalhador. E a
emancipação é obra dos próprios trabalhadores que libertando-se libertam a
humanidade inteira.
Fromm
ressalta a importância de percebermos que no processo de trabalho alienado “não
só o mundo das coisas que se torna superior ao homem, mas também as
circunstâncias sociais e políticas por ele criadas se tornam seus senhores”
(Fromm, 1983, p. 57). Fromm, em consonância com Marx, aponta a possibilidade de
generalização da alienação. Ela inicia no processo de trabalho e se generaliza
por toda parte. Com isto, vimos que “a alienação conduz à perversão de todos os
valores”. A alienação torna cada esfera da vida (econômica, moral) separada,
desmembrada uma da outra. Ele alude ao fato de a alienação ser cada vez maior
em segmentos da sociedade que manipulam símbolos e homens. Afirma que Marx não
previu o quanto a alienação se expandiria, contaminando assim, toda a vida
social. Aponta, finalmente, o nível de coisificação das relações humanas e
conclui dizendo que a humanidade se tornou prisioneira das coisas que criou,
tornando a si própria mercadoria, coisa vendável. Enfim, no essencial, estas
são as contribuições de Erich Fromm ao estudo da questão da alienação.
Marcuse:
Alienação e Materialismo Histórico
No
capítulo “Novas Fontes Para a
Fundamentação do Materialismo Histórico”, em seu livro Idéias Para Uma Teoria Crítica da Sociedade”, Marcuse se baseia na
crítica de Marx, no momento em que este último busca a base para uma “crítica e
fundamentação filosóficas da Economia Política no sentido de uma teoria da
revolução” (Marcuse, 1981, p. 9), para apresentar sua discussão sobre a questão
da alienação.
Marcuse
procura nos Manuscritos Econômicos e
Filosóficos de Marx elementos que possibilitem a discussão das categorias
fundamentais da teoria marxista, a saber: trabalho, objetivação, alienação,
superação, propriedade. Embora o objetivo desta parte de nosso trabalho
apresente como principal meta a definição de alienação na visão de Marcuse, não
podemos deixar de reconhecer que para ele as categorias fundamentais da teoria
de Marx estão implicadas entre si, sendo que o conceito de alienação passa
necessariamente pelas demais categorias (citadas acima), sem as quais não seria
possível delinearmos o conceito de alienação na concepção de Marx. Neste
sentido, o conceito de trabalho será tomado aqui como o determinante.
Perguntamos, então: como é definida a categoria trabalho? E mais: porque tal
categoria fornece os elementos necessários para a compreensão das demais?
Marcuse
leva o leitor a compreender a importância de se distinguir, tal como fez Marx,
a “economia política tradicional” da “economia política socialista”. A
primeira, oculta a realidade social alienando e desvalorando o homem; e a
segunda é a única capaz de desvendar as “leis aparentemente inalteráveis” da
sociedade. É aqui que a economia política socialista toma como fato a
“exteriorização” e a “alienação”, enquanto a tradicional não aceita tais
conceitos como fatos. Ao operar a “crítica positiva” da economia política, Marx
afirma que a alienação e a exteriorização fazem parte da economia política
tradicional. A seguir, ele dividirá inicialmente a análise em três conceitos:
“salário do trabalho”, “lucro do capital” e “renda da terra”. No entanto,
Marcuse vai nos mostrar logo adiante que Marx vai romper com estes três
conceitos e apresentar um novo conceito —
o de trabalho alienado. É então que Marcuse vai apresentar o fato novo
descoberto por Marx:
O
conceito de trabalho, portanto, em seu desenvolvimento rompe o âmbito delineado
pela colocação do problema; sob este conceito prossegue a discussão que, então,
descobre um novo ‘fato’ que se transforma em base da revolução comunista. A
interpretação deve, portanto, fixar-se no conceito marxista de trabalho
(Marcuse, 1981, p. 14).
Percebemos,
então, que para Marcuse, o conceito marxista de trabalho é a chave para se
interpretar os Manuscritos.
Quando
Marx descreve a forma de trabalho e a forma de existência do trabalhador
existentes na sociedade capitalista: completa separação em relação aos meios de
produção e ao produto do trabalho transformado em mercadoria, oscilação dos
salários, do trabalho em torno do mínimo físico de subsistência, desconexão
entre o trabalho —
realizado como ‘trabalho forçado’ a serviço do capitalista —
e a ‘realidade humana’ do trabalhador, então todas essas características podem
apresentar-se como simples fatos da Economia Política. Esta impressão parece
ser confirmada pelo fato de que Marx retira ‘por meio da análise do conceito de
trabalho exteriorizado’ o conceito de ‘propriedade privada’, ou seja, o
conceito de Economia Política (Marcuse, 1981, p. 14).
Marcuse,
ao analisar a “caracterização do trabalho exteriorizado” percebe que o que
caracteriza tal trabalho não é somente “uma situação econômica” mas uma
alienação e desvalorização da vida humana, que leva a uma “distorção” de fatos
da existência humana. Neste contexto, a análise de Marcuse tenta resgatar a
importância de se tomar o homem como tal e não como mero “sujeito econômico”.
Tal resgate implica em superar a propriedade privada — nela o homem é tomado como objeto. Aqui
há uma conexão positiva entre a essência humana e filosofia, esta última
fornece as bases filosóficas para a superação da alienação.
Desta
forma podemos compreender o conceito marxista de trabalho, que não é apenas um
“fato econômico” ou um conceito de economia política burguesa e sim a “essência
humana”, ou seja, o que caracteriza as “forças essenciais humanas”. Marcuse,
mais adiante, após definir a categoria trabalho, descreve o desenvolvimento
histórico da humanidade, e vimos que nessa concepção de trabalho já estava
lançado as possibilidades de existência do trabalho alienado. A partir do
momento em que o trabalhador na sua determinidade se separa do produto que
criou, outro se apropriará dele, ou seja, o não-trabalhador. Esta separação do
trabalhador do objeto criado por ele ocasiona uma divisão do trabalho. Não se
trata apenas do fato, verdadeiro, de que o trabalhador perca o produto do seu
próprio trabalho, mas sim da própria transformação do trabalho em mercadoria,
em algo que é vendável. Segundo Marcuse,
Assim
o trabalho, em vez de uma manifestação do todo do homem, se transforma em
‘exteriorização’, em vez de plena e livre realização do homem se transforma em
total ‘desrealização’: ele apresenta de tal forma como desrealização que o
trabalhador é desrealizado até o estado de inanição (Marcuse, 1981, p. 17).
Como,
então, Marcuse irá definir alienação? Ele a define como sendo uma determinada
relação do trabalhador com o objeto de seu trabalho, é, pois, nesta relação que
se “funda o fato da alienação e coisificação”. Assim, a exteriorização do
trabalho apresenta uma “destruição” e “alienação” da essência humana. O
trabalho é o espaço da realização autêntica do homem, mas não o trabalho
alienado. Para expressar esta realização autêntica do homem no trabalho, Marcuse
fala em objetivação. Ele considera
que, para Marx, o homem é um “ser genérico”, “universal”. O “gênero” de um ser
é a sua raiz, sua essência. Esta essência é comum a todos que pertencem a este
gênero. Para Marcuse,
Ele
pode relacionar-se livremente com todo ser; ele não está limitado pela
determinação fatual momentânea do ser e por sua relação direta com essa
determinação; essência de qualquer determinação direta factual; ele pode
reconhecer e apreender as possibilidades que existem em cada ser; ele pode
esgotar, transformar, construir, dirigir (‘produzir’) todo ser segundo esta
‘medida imanente’. O trabalho como ‘atividade vital’ especificamente humana se
baseia nesse ‘ser genérico’ do homem: o trabalho pressupõe o poder
relacionar-se com o ‘universal’ dos objetos e com as possibilidades neles
imanentes. E no poder relacionar-se com o próprio gênero se baseia a liberdade
especificamente humana: a auto-realização, ‘autoprodução’ do homem. Por meio do
conceito de trabalho livre (do livre produzir), a relação do homem como ser
genérico com seus objetos se torna mais clara (Marcuse, 1981, p. 22-23).
Neste
sentido, o trabalho possui duas faces: é ao mesmo tempo, realização e
destruição da essência humana. Isto só pode ser explicado pela situação
histórica concreta do homem, onde se dá a inter-relação entre “essência” e
“facticidade”. Não se trata de essência humana abstrata que está acima da
história e sim algo que se determina na história e somente nela. Daí a
possibilidade do trabalho passar de “realização” para “desrealização” humana.
Houve, no processo histórico da humanidade, uma separação entre essência e
existência. A existência deixa de ser um meio para manifestação de sua essência
para que a essência seja um meio para manter a existência física do homem.
Assim, se estabelece a alienação do trabalho. Marcuse conclui que:
Se,
desse modo, a essência e a existência se separam e sua reunificação como
realização factual é a tarefa propriamente livre da prática humana, então,
quando a facticidade chegou até a inteira inversão da essência humana, a
superação radical dessa facticidade é a tarefa pura e simplesmente. Exatamente
a visão certeira da essência do homem se transforma em impulso para a
fundamentação da revolução radical: o fato de que na situação factual do
capitalismo não se trata apenas de uma crise econômica ou política, e sim de
uma catástrofe da essência humana —
esta concepção condena toda e qualquer reforma econômica ou política ao
fracasso e exige a superação catastrófica da situação factual por meio da
revolução total. Somente a partir de uma fundamentação correta, cuja solidez
não possa ser abalada por meio de argumentos econômicos ou políticos, é que
surge a questão das condições históricas e dos portadores da revolução: a
teoria da luta de classes e da ditadura do proletariado. Toda crítica que se
ocupa dessa teoria sem discutir seu fundamento próprio não atinge seu objeto
(Marcuse, 1981, p. 36-37).
Qual
é a origem da alienação? Segundo Marcuse a demonstração disto é tarefa da
análise econômico-histórica. Para Marx, tal origem se encontra na divisão do
trabalho. Isto deriva da concepção de Marx de que o próprio trabalhador produz
o domínio capitalista, pois a auto-alienação do homem de si mesmo se dá na
relação com outros homens. Segundo
Marcuse,
O
contexto em que essa afirmação se encontra já é conhecido: o relacionamento do
homem com o objeto de seu trabalho é imediatamente seu relacionamento com
outros homens, com os quais ele tem esse objeto e a si mesmo como ser social
(Marcuse, 1981, p. 45).
Se
o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, é porque pertence a outros
homens que não o trabalhador, então, surge a figura do não-trabalhador. Através
da alienação, o trabalhador se relaciona com sua própria atividade como
“atividade não-livre”, sob o domínio e a coerção de outro, o não-trabalhador. Marcuse
afirma que:
Não
se trata de que existe primeiro um ‘senhor’ que submete um outro homem,
exterioriza dele o seu trabalho, transforma-o em um simples trabalhador e a si
mesmo em não-trabalhador; mas tampouco se trata de que a relação de dominação e
servidão seja mera conseqüência da exteriorização do trabalho, pois a
exteriorização do trabalho, como alienação da própria atividade e de seu
objeto, em si mesma já é a relação entre trabalhador e não-trabalhador,
dominação e servidão (Marcuse, 1981, p. 45).
Marcuse,
Fromm e o Conceito Marxista de Alienação
Podemos
dizer que Fromm e Marcuse divergem na concepção do que vem a ser alienação. Fromm
define alienação como sendo a “negação da produtividade” humana, ou seja, da
capacidade criadora do homem. Ele também coloca tal conceito como sinônimo de
idolatria. Alienação e idolatria, então, são, na concepção de Fromm, a mesma
coisa. Tal questão abre possibilidades para questionamentos: idolatria não seria
apenas uma conseqüência da alienação e não a própria alienação?
Apesar
de Fromm concordar com Marx, no que concerne a questão da origem da alienação,
ou seja, na idéia de que a alienação surge com o aparecimento da divisão social
do trabalho, ele tende a definir a alienação como sendo um processo que ocorre
na relação do homem com o produto de seu trabalho, tal como visto pela
consciência humana, daí sua identificação entre alienação e idolatria. Mas, se
retomarmos a definição de alienação fornecida por Marx, veremos que as duas
definições são contraditórias. Para Marx, é no trabalho (atividade vital
humana, característica da essência humana) que ocorre a alienação. É por isso
que ele fala em trabalho alienado.
Este se caracteriza por uma determinada relação
social onde o não-trabalhador dirige
o processo de trabalho do trabalhador.
A
relação do trabalhador com o produto do seu trabalho, bem como a visão que ele
possui deste produto, é uma conseqüência
daquela relação anterior. Se o trabalhador não dirige o seu processo de
trabalho, então ele também não irá ter o domínio sobre este seu produto e por
isso terá um “estranhamento” em relação a ele. Portanto, são três processos
inter-relacionados: relação homem/trabalho; relação homem/produto do trabalho; relação
da consciência humana com o produto do trabalho. Marx utiliza a expressão
“alienação” para expressar estas três relações (Viana, 1995).
Porém,
deve-se reconhecer que ele utiliza esta expressão em vários sentidos, tanto no
sentido tradicional fornecido pela filosofia alemã (ligado à questão da
consciência) quanto no sentido novo fornecido por ele (trabalho alienado), que,
às vezes, para distinguir de outros sentidos, ele chama de “auto-alienação”.
Para a relação do trabalhador com o produto do trabalho e o não-trabalhador
Marx cunharia a expressão exploração
e para relação do trabalhador com o produto de seu trabalho na consciência, ele
adotaria o conceito de fetichismo (Viana,
1995; Marx, 1988).
Fromm,
assim, confunde fetichismo (idolatria) com alienação, pois a idolatria é o resultado da alienação e a alienação é o
próprio processo. Fromm reconhece a alienação no trabalho (“negação da
produtividade humana”) mas acaba deslizando sua interpretação para a
consciência do trabalhador a respeito do produto do trabalho e este é o seu
grande equívoco.
E
a interpretação de Marcuse? Ele acaba caindo na mesma ambigüidade que Fromm,
pois, inicialmente, ele define a alienação como uma determinada relação entre o
trabalhador com o objeto do seu trabalho (exploração) e posteriormente como
sendo a própria atividade, a relação do trabalhador com seu trabalho
caracterizada pela dominação do não-trabalhador sobre o seu processo. Neste
sentido, Marcuse comete equívocos semelhantes aos de Fromm.
Quais
são as divergências e convergências entre Fromm e Marcuse? A principal
convergência entre ambos está na definição do conceito de trabalho e nisto eles
estão de pleno acordo com Marx: o trabalho, em sentido amplo, é a essência
humana[1]. O homem
humaniza o mundo através de seu trabalho sobre ele e assim revela sua essência
e manifesta suas capacidades produtivas. Entretanto, em determinadas condições
sociais surge o trabalho alienado,
que é a negação desta essência. Portanto, tanto Fromm quanto Marcuse reconhecem
o caráter dual do trabalho na história: pode ser objetivação ou alienação.
Mas
também existe divergência entre ambos. Marcuse faz uma abordagem excessivamente
filosófica dos Manuscritos, enquanto
que Fromm coloca sua interpretação em termos históricos-concretos, ou seja, num
sentido mais próximo de Marx. Marcuse não compreende a ruptura efetuada por
Marx com a filosofia, (que culminará com a formação do “socialismo científico”)
e faz uma interpretação que não sai do campo filosófico e quando isto se faz
necessário pela própria exigência do texto de Marx (por exemplo, o problema da
origem da alienação) Marcuse diz que se trata de uma análise histórico-econômica
que ele não irá abordar. Neste sentido, Fromm avança mais que Marcuse. Assim,
fica claro os limites da “filosofia da psicanálise” de Marcuse, já discutidas
por Viana, uma das razões das divergências entre os dois pensadores (Viana,
2008).
Outra
divergência se encontra na ênfase que cada um coloca na definição de alienação.
Para Fromm a alienação se realiza no processo de trabalho e derivado daí a
visão do trabalhador a respeito do produto do seu trabalho (em termos
marxistas: alienação e fetichismo) e Marcuse observa a alienação no processo de
trabalho e na ralação entre o trabalhador e o produto do trabalho (em termos marxistas:
alienação e exploração ou “alheamento”). Nesta parte é Marcuse que avança mais
do que Fromm. A razão disto se encontra no fato de que Marcuse focaliza as
relações sociais como locus da
alienação, enquanto que Fromm ao confundir alienação e fetichismo abre a
possibilidade para a transformação da questão da alienação em um “problema da
consciência”, sendo este um procedimento da filosofia idealista em visível
contradição com a concepção materialista de Marx.
Por
fim, devemos reconhecer os méritos tanto de Fromm quanto de Marcuse. Ambos
buscam interpretar e compreender os Manuscritos
de Marx, que são considerados por muitos como escritos “pré-marxistas” e
“pré-científicos” (Godelier, 1969). Eles também esclarecem importantes questões
sobre os Manuscritos e, além disso,
recuperam o significado autêntico do conceito marxista de trabalho. São,
portanto, duas contribuições importantes para o pensamento social contemporâneo,
apesar de suas deficiências no processo de análise do conceito de alienação.
Referências
bibliográficas
FROMM, Erich. O
Conceito Marxista do Homem. 8a edição, Rio de Janeiro,
Zahar, 1983.
GODELIER, Maurice. Racionalidade e Irracionalidade na Economia. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, 1969.
MARCUSE, Herbert. Idéias
Para Uma Teoria Crítica da Sociedade. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
MARX, Karl. Manuscritos
Econômico-Filosóficos. In: FROMM,
Erich. O Conceito Marxista do Homem.
8a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
MARX, Karl. O
Capital. Vol. 1. 3a edição, São Paulo, Nova Cultural,
1988.
VIANA, Nildo. Alienação
e Fetichismo em Marx. In: Revista Fragmentos de Cultura. Ano 05, No
11, maio de 1995.
VIANA, Nildo. Marcuse
e a Crítica ao Neofreudismo. In: Universo
Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo:
Escuta, 2008.
VIANA, Nildo. Os
Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007.
[1]
Claro que acrescentando que tal trabalho é realizado através da cooperação, o
que faz a sociabilidade ser parte da essência humana (Viana, 2007).
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