Erich
Fromm
O conceito de “caráter revolucionário” é político e
psicológico. Sob esse aspecto, assemelha-se ao conceito do caráter autoritário,
introduzido na Psicologia há cerca de trinta anos, e que combinava uma
categoria política, a da estrutura autoritária no Estado e família, com uma
categoria psicológica, a estrutura do caráter, que forma a base dessa estrutura
política e social.
O conceito do caráter autoritário nasceu de certos
interesses políticos. Aproximadamente em 1930 na Alemanha, desejávamos saber as
possibilidades de ser Hitler derrotado pela maioria da população[1]. Na
época, a maior parte da população alemã, especialmente os trabalhadores e
funcionários, era contra o nazismo.
Estava ao lado da democracia, como o demonstraram as eleições políticas
e sindicais. A questão era se lutaria
pelas suas ideias, no caso de ser isso necessário. A premissa era a de que ter uma opinião é uma
coisa, ter uma convicção é outra. Ou, em outras palavras, qualquer pessoa pode
adotar uma opinião, como pode aprender uma língua ou costume estrangeiro, mas
somente as opiniões arraigadas na estrutura do caráter da pessoa, atrás da qual
está a energia encerrada em seu caráter - somente essas opiniões se tornam
convicções. O efeito das ideias, que
são fáceis de aceitar se proclamadas pela maioria, depende em grande parte da
estrutura de caráter de uma pessoa numa situação crítica. O caráter, como disse
Heráclito e Freud demonstrou é o destino do homem. A estrutura do caráter
decide qual a ideia que o homem escolherá, e decide também a força da ideia
escolhida. Isso tem realmente grande importância no conceito freudiano do
caráter - o de que ele transcende o conceito tradicional de comportamento e se
relaciona com o comportamento dinamicamente carregado, de modo que o homem não
somente pensa de certa forma como também seu pensamento mesmo é proveniente de
suas inclinações e emoções.
A pergunta que fizemos, naquela época, foi: até que
ponto os trabalhadores e funcionários alemães têm uma estrutura de caráter que
se opõe ao autoritarismo nazista? E isso implicava outra questão: até que ponto
os trabalhadores e empregados alemães, na hora crítica, combaterão o nazismo?
Fêz-se um estudo e o resultado foi que, falando de modo geral, 10% dos
trabalhadores e funcionários alemães tinham o que chamaríamos de estrutura de
caráter autoritária; cêrca de 15% tinham uma estrutura de caráter democrática,
e a grande maioria - cerca de 75% - era de pessoas com uma estrutura de caráter
representando uma mistura desses extremos[2]. A
suposição teórica foi a de que os autoritários seriam nazistas ardentes, os “democráticos”
seriam militantes antinazistas, e a maioria nem uma coisa nem outra. Tais
suposições teóricas revelaram-se mais ou menos certas, como os fatos ocorridos
entre 1933 e 1945 mostraram[3].
Para nosso objetivo aqui, basta dizer que a
estrutura de caráter autoritária encontra-se na pessoa cujo senso de força e
identidade baseia-se numa subordinação simbiótica às autoridades, e ao mesmo
tempo um domínio simbiótico dos que estão submetidos à sua autoridade. Ou seja,
o caráter autoritário sente-se mais forte quando pode submeter-se a uma
autoridade e ser parte dela, desde que seja (e até certo ponto apoiado na
realidade) exagerada, deificada, e quando ao mesmo tempo pode crescer pelo fato
de incorporar os que lhe estão sujeitos à autoridade. É um estado de simbiose
sádico-masoquista, que lhe dá uma sensação de força e de identidade. Sendo
parte de algo grande (qualquer que seja), ele se torna grande. Se estivesse sozinho, se reduziria a nada. Por essa simples razão, uma ameaça à autoridade
e uma ameaça à estrutura autoritária são, para o caráter autoritário, uma
ameaça a si mesmo - à sua sanidade. Por isso, ele é forçado a lutar contra tal
ameaça como lutaria contra um perigo à sua vida ou sanidade.
Referindo-me agora ao conceito de caráter
revolucionário, gostaria de começar mostrando o que não me parece que esse
caráter seja. Evidentemente, não se
trata de uma pessoa que participa de revoluções. Tal é exatamente a distinção
entre comportamento e caráter no sentido dinâmico freudiano. Qualquer pessoa
pode, por várias razões, participar de uma revolução, a despeito do que sinta,
desde que aja pela revolução. Mas o fato de agir como revolucionário pouco nos
revela do seu caráter.
A segunda coisa que o caráter revolucionário não me
parece ser é um pouco mais complicada. Ele não é um rebelde. Que entendo por
isso?[4]Defino
o rebelde como a pessoa profundamente ressentida contra a autoridade Por não
ser apreciada, amada, aceita. O rebelde deseja derrubar a autoridade devido ao
seu ressentimento e, em consequência, constituir-se na autoridade, em
substituição à derrubada. Muito frequentemente, no momento mesmo em que atinge
tal objetivo, torna-se amigo da própria autoridade que combatia tão
acerbamente, antes.
O tipo caracterológico do rebelde é bem conhecido
na história política do século XX.
Tome-se, por exemplo, uma figura como Ramsay MacDonald, que começou como
pacifista e um homem que tinha objeções de consciência. Quando conquistou poder
suficiente, deixou o Partido Trabalhista para unir-se às próprias autoridades
que combatera durante tantos anos, dizendo a seu amigo e ex-camarada, Snowdon,
no dia em que ingressou no Governo Nacional: “Hoje, toda duquesa em Londres
desejará beijar-me nas duas faces.” Temos aqui o tipo clássico de rebelde que
usa a rebelião para tornar-se autoridade.
São necessários anos, por vezes, para atingir isso;
outras vezes, as coisas correm mais rápidas. Se tomarmos, por exemplo, uma
personalidade como o infeliz Laval, na França, que começou como rebelde, podemos
lembrar que um curto espaço transcorreu até que ele adquirisse bastante capital
político para poder vender-se. Há
muitos outros a mencionar, mas o mecanismo psicológico é sempre o mesmo.
Poderíamos dizer que a vida política do século XX é um cemitério encerrando os
túmulos morais de pessoas que começaram como revolucionários e revelaram-se
apenas rebeldes oportunistas.
Há ainda uma coisa que o caráter revolucionário não
é, e um pouco mais complicada do que o conceito do rebelde: não é um
fanático. Os revolucionários, no
sentido de comportamento, são frequentemente fanáticos, e nesse ponto a
diferença entre o comportamento político e a estrutura de caráter é bastante
evidente - pelo menos, tal como vejo o caráter do revolucionário. Que entendo
por fanático? Não quero dizer com
isso o homem que tem uma convicção. (Poderia dizer que hoje tornou-se moda
chamar a todos os que têm uma convicção de “fanáticos” e a todos que não a têm,
ou cuja convicção é facilmente modificável, de “realistas”.).
Creio ser possível descrever o fanático
clinicamente como a pessoa excessivamente narcisista - na realidade, a pessoa
que está próxima da psicose (depressão, frequentemente unida a tendências
paranoicas), uma pessoa completamente desligada, como qualquer psicótico, do
mundo exterior. Mas o fanático encontrou uma solução que o salva da psicose
evidente. Escolheu uma causa, qualquer que seja – política, religiosa ou outra
– e a endeusou. Fez dela um ídolo, e, pela completa submissão a ele, adquire um
apaixonado senso da vida, um sentido para a vida, pois em sua submissão se
identifica com o ídolo, que endeusou e transformou num absoluto.
Se quiséssemos escolher um símbolo para o fanático,
seria o do gelo candente. É a pessoa
apaixonada e extremamente fria ao mesmo tempo. Está desligada do mundo, e ao
mesmo tempo cheia de uma paixão escaldante, a paixão da participação e da
submissão ao Absoluto. Para reconhecer o
caráter do fanático devemos ouvir não tanto o que ele diz, mas observar o
brilho particular em seu olhar, a paixão fria que é o paradoxo do fanático, ou
seja, uma total falta de correlação fundida a uma adoração apaixonada do seu
ídolo. O fanático está próximo daquilo que os profetas chamam de “adorador de
ídolo”. Desnecessário dizer que ele sempre teve um papel de relevo na história,
e frequentemente fingiu de revolucionário, e o que diz é precisamente – ou
parece ser – o que um revolucionário diria.
Procurei explicar o que não me parece ser o caráter
revolucionário. Creio que o conceito
caracterológico do revolucionário é hoje importante - tão importante, talvez,
quanto o conceito do caráter autoritário. Realmente, vivemos numa época de
revoluções, iniciada há cerca de trezentos anos, desde as rebeliões políticas
dos ingleses, franceses e americanos, e que continuou com as revoluções sociais
na Rússia, China e presentemente - na América Latina.
Nesta era revolucionária, a palavra “revolucionário”
não tem atrativos em muitas partes do mundo, como qualificação positiva para
muitos movimentos políticos. Na verdade, todos os movimentos que usam tal
palavra alegam objetivos muito semelhantes, ou seja, o de que lutam pela
liberdade e independência. Mas na realidade alguns o fazem, outros não; e por
isso entendo que alguns na realidade lutam pela independência, noutros os
refrões revolucionários são usados para combater os regimes autoritários, em
mãos de uma elite diferente.
Como definir uma revolução? Poderíamos defini-la no sentido do
dicionário, afirmando simplesmente que é a derrubada, pacífica ou violenta, de
qualquer governo e sua substituição por um novo governo. É, evidentemente, uma
definição política muito formal, e sem qualquer sentido particular. Poderíamos,
num senso mais marxista, definir a revolução como a substituição de uma ordem
existente por outra historicamente mais progressista. Surge, naturalmente, a
indagação de quem pode decidir o que é “historicamente mais progressista”.
Habitualmente é o vencedor, pelo menos em seu próprio país.
Finalmente, poderíamos definir a revolução no
sentido psicológico, afirmando que ela é um movimento político liderado por
pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pessoas de caráter
revolucionário. Não se trata de uma grande definição, mas é útil do ponto de
vista deste ensaio, já que coloca toda a ênfase na questão que vamos agora
debater: que é o caráter revolucionário?
O traço mais fundamental do “caráter revolucionário”
é ser independente – é ser livre. É fácil compreender que a independência é o
oposto da ligação simbiótica aos poderosos, que ocupam posições superiores, e
aos impotentes, que ocupam posições inferiores, como mencionei ao falar do
caráter autoritário. Mas isso não esclarece bastante o que entendemos por “independente”
e “liberdade”. A dificuldade está precisamente no fato de que as palavras “liberdade”
e “independência” são usadas hoje com a implicação de que num sistema
democrático todos são livres e independentes. Esse conceito de liberdade e
independência tem suas raízes na revolução da classe média contra a ordem
feudal, e adquiriu nova força contrastando com os regimes totalitários. Durante
a ordem feudal e absolutista, o indivíduo não era nem livre nem independente.
Estava sujeito a regras tradicionais ou arbitrárias, às ordens dos que estavam
acima dele. As revoluções burguesas
vitoriosas na Europa e na América deram liberdade política e independência ao
indivíduo. Era uma “liberdade em relação
a alguma coisa” uma independência em relação às autoridades políticas.
Foi, sem dúvida, um progresso importante, muito
embora o industrialismo de hoje tenha criado novas formas de dependência, nas
limitadoras burocracias que contrastam com a iniciativa e a independência sem
peias do homem de negócios do século XIX. O problema da independência e
liberdade, porém, é muito mais profundo do que no sentido acima. Na realidade,
o problema da independência é o aspecto mais fundamental da evolução humana,
desde que o vejamos em toda a sua profundidade e alcance.
O recém-nascido está ainda intimamente ligado ao
seu meio ambiente. Para ele, o Mundo exterior não existe ainda como uma
realidade isolada dele. Mesmo quando a criança pode reconhecer os objetos
continua por muito tempo impotente, e não poderia sobreviver sem a ajuda da mãe
e do pai. A impotência prolongada do ser humano, em contraste com a do animal,
é uma base dessa evolução, mas também ensina a criança a apoiar-se no poder - e
a temê-lo.
Normalmente, no período que vai do nascimento à
puberdade, os pais são os que representam o poder e seu duplo aspecto: ajuda e
punição. Na época da puberdade, o jovem atinge uma fase de evolução na qual
pode prover-se (certamente nas sociedades agrárias mais simples) e não deve
necessariamente sua existência social aos seus pais. Pode tornar-se economicamente independente
deles. Em muitas sociedades
primitivas a independência (particularmente em relação à mãe) se manifesta
pelos ritos de iniciação que, não obstante, não modificam a dependência do clã,
em seu aspecto masculino. A maturidade sexual é outro fator para estimular o
processo de emancipação dos pais. O desejo e a satisfação sexual unem uma
pessoa às demais, fora de sua família. O ato sexual, em si, não depende do
auxílio da mãe ou do pai, e nele o jovem se sente totalmente ele mesmo.
Até mesmo nas sociedades em que a satisfação do ato
sexual é adiada até cinco ou dez anos depois da puberdade, o desejo sexual
despertado cria anseios de independência e provoca conflitos com a autoridade
paterna e as autoridades sociais. A pessoa normal adquire esse grau de
independência muitos anos após a puberdade. Mas o fato inegável é que tal
independência, muito embora a pessoa possa ganhar a vida, casar-se e ter
filhos, não significa que se tenha tornado realmente livre e independente. Continua sendo, como adulto, bastante
impotente e procura encontrar forças que o protejam e lhe proporcionem
sentimento de segurança. O preço pago por esse auxílio é tornar-se dependente
dele, perder sua liberdade e reduzir o processo de seu crescimento. Toma seus pensamentos de empréstimo a ele,
seus sentimentos, objetivos e valores – embora viva sob a ilusão de ser quem
pensa, sente e faz as escolhas.
A liberdade e a independência totais só existem
quando o indivíduo pensa, sente e decide por si. Só pode fazê-lo autenticamente
quando atinge uma relação produtiva com o mundo exterior, que lhe permite
reagir de forma autêntica. Esse conceito de liberdade e independência
encontra-se no pensamento dos místicos radicais, bem como no de Marx. O mais
radical dos místicos cristãos, Meister Eckhart, diz: “Que é a minha vida?
Aquilo que se afasta de dentro, por si mesmo. Aquilo que se move de fora não
Vive”[5] Ou: “...
se o homem decide ou recebe alguma coisa do exterior, está errado. Não devemos
apreender Deus nem considerá-lo fora de nós mesmos, mas como nosso e como o que
está em nós”[6].
Marx, num espírito semelhante, embora não
teológico, diz: “O ser não se considera como independente, a menos que seja seu
próprio senhor e só é seu senhor quando deve sua existência a si mesmo. O homem
que vive por favor de outro considera-se um ser dependente. Mas vivo totalmente pelo favor de outra
pessoa quando lhe devo não só a continuação de minha vida, mas também sua
criação, quando ela é a sua fonte. Minha vida terá necessariamente essa causa
exterior, se não for minha própria criação”[7].
OU, como Marx disse em outro lugar: “O homem só é
independente se afirma sua individualidade como homem total em todas as suas
relações com o mundo ‘na visão,
audição, olfato, paladar, sentimento, pensamento, desejo, amor - em suma, se
afirma e expressa todos os órgãos de sua individualidade.” A independência e a
liberdade são a realização da individualidade, não somente a emancipação de
coação, nem a liberdade em questões comerciais.
O problema de cada pessoa é precisamente o do nível
de liberdade atingido. O homem plenamente desperto, produtivo, é livre porque
pode viver com autenticidade - seu ser é a fonte de sua vida. (Não deveria ser necessário dizer que isso
não significa que o homem independente seja um homem isolado, pois o
crescimento da personalidade ocorre no processo de relacionar-se e
interessar-se pelos outros e pelo mundo. Mas essa relação é totalmente
diferente da dependência.) Enquanto para Marx o problema da independência como
autorrealização leva à crítica da sociedade burguesa, Freud trata do mesmo
problema dentro dos limites de sua teoria, em termos do complexo de Édipo.
Freud, acreditando que o caminho da sanidade mental
está na superação da fixação incestuosa em relação à mãe, afirmou que a saúde
mental e a maturidade são baseadas na emancipação e independência. Mas para ele
esse processo era iniciado pelo medo da castração pelo pai, e terminava
incorporando as ordens e proibições paternas no próprio eu (superego). Por isso,
a independência continuava parcial (ou seja, apenas em relação à mãe); a
dependência do pai e das autoridades sociais continuava através do superego.
O caráter revolucionário ídentifica-se com a
humanidade e portanto transcende os estreitos limites de sua própria sociedade
e pode, por isso, criticar a sua sociedade, ou qualquer outra, do ponto de
vista da razão e humanidade. Não está preso no culto paroquial da cultura em
que tenha nascido, e que representa apenas um acidente de tempo e geografia.
Pode examinar seu meio com os olhos abertos de um homem acordado que baseia seu
critério para julgar as coisas acidentais naquilo que não é acidental (a
razão), nas normas que existem na raça humana e para ela.
O caráter revolucionário identifica-se com a
humanidade. Encerra ainda uma profunda “reverência pela vida”, para usarmos a
expressão de Albert Schweitzer, uma profunda afinidade com a vida e um profundo
amor por ela. É certo, na medida em que nos assemelhamos aos outros animais,
que nos apegamos à vida e lutamos contra a morte. Mas o apego à vida é algo
totalmente diferente do amor à vida. Isso será ainda mais evidente se
considerarmos o fato de que há um tipo de personalidade atraída pela morte,
destruição e decadência, e não pela vida. (Hitler é um bom exemplo histórico
disso). Esse tipo de caráter pode ser chamado de necrófilo, para usarmos uma
expressão de Unamuno, em sua famosa resposta, em 1936, a um general Franco,
cuja frase preferida era “Viva a morte”.
A atração da morte e destruição pode não ser consciente
na pessoa, não obstante sua presença poder ser deduzida pelos seus atos.
Estrangular, esmagar e destruir a vida dá-lhe a mesma satisfação que os amantes
da vida encontram em fazer que esta se amplie, cresça, evolua. A necrofilia é
uma verdadeira perversão, a de visar à destruição enquanto estamos vivos.
O caráter revolucionário pensa e sente de acordo
com o que poderíamos chamar de “sentimento crítico” - numa clave crítica,
usando um símbolo musical. O refrão latino De omnibus est dubitandum (é preciso
duvidar de tudo) é parte muito importante de sua reação ao mundo. Esta
tendência crítica a que me refiro não é, de forma alguma, o cinismo, mas sim
uma percepção da realidade, em contraste com as ficções feitas para substituir
a realidade[8].
O caráter não-revolucionário inclina-se,
particularmente, a acreditar nas coisas ditas pela maioria. A pessoa de espírito crítico reagirá
precisamente de forma oposta. Adotará uma atitude crítica ao ouvir o julgamento
da maioria, que é o julgamento de todos e daqueles que detêm o poder.
Evidentemente, se a maioria das pessoas fosse verdadeiramente cristã, como
pretende, não teria dificuldade em manter tal atitude, pois na verdade essa
atitude crítica em relação aos padrões acatados foi adotada por Jesus. E foi
também a de Sócrates, dos profetas e de muitos homens que, de uma forma ou de
outra, reverenciamos. E somente muito depois de sua morte - ou seja, depois de
estarem suficientemente mortos, a ponto de não poderem causar problemas - é que
podem ser louvados sem risco.
O “espírito crítico” torna a pessoa sensível ao
clichê, ao chamado bom-senso que repete a mesma tolice indefinidamente, e só
tem sentido porque todos o repetem.
Talvez o espírito crítico a que me refiro não seja algo que se possa
definir facilmente, mas, se realizarmos experiências conosco e com outros,
descobriremos facilmente a pessoa que o tem.
Como milhões de pessoas, por exemplo, acreditam que
pela corrida atômica a paz pode ser mantida? Toda a experiência passada
contraria tal suposição. Quantas pessoas acreditam que se a sirena soar -
embora se tenham construído abrigos nos grandes centros metropolitanos dos
Estados Unidos - poderão salvar-se?
Sabem que teriam apenas quinze minutos.
Não é preciso ser alarmista para prever que essa pessoa seria pisada de
morte tentando alcançar as portas do abrigo nesses quinze minutos. Mesmo assim
aparentemente, milhões acreditam que os nossos famosos abrigos subterrâneos são
capazes de salvá-los de bombas de 50 ou 100 megatons. Por quê? Porque não têm
espírito crítico. Um menino de cinco anos (crianças dessa idade habitualmente
têm uma atitude mais crítica do que os adultos), ao ouvir a mesma história,
provavelmente a colocará em dúvida. A
maioria dos adultos é suficientemente “educada” para não ter espírito crítico,
e por isso aceita como “exatas” ideias que são absurdos evidentes.
Além de ter um espírito crítico, o caráter
revolucionário tem uma relação particular com o poder. Não é um sonhador que
não sabe que o poder pode matar, forçar e até mesmo perverter. Mas tem uma
relação particular com o poder, em outro sentido. Para ele, o poder jamais se
torna santificado, jamais toma o papel da verdade, da moral e do bem. Esse é talvez um dos mais importantes, e não
o mais importante, dos problemas de hoje: a relação que as pessoas têm com o
poder. Não é uma questão de saber o que é o poder, nem o problema de falta de
realismo, de subestimar o papel e as funções do poder. É uma questão de
santificar ou não o poder, deixar-se impressionar moralmente ou não por ele.
Quem se impressiona moralmente pelo poder jamais terá espírito crítico, jamais
será um caráter revolucionário.
O caráter revolucionário é capaz de dizer “não”.
OU, em outras palavras, o caráter revolucionário é capaz de desobediência, que
para ele pode ser uma virtude. Para explicar
isso, posso partir de uma afirmação que parece bastante generalizadora: a
história humana começou com um ato de desobediência e poderia terminar com um
ato de desobediência. Que entendo por isso?
Ao dizer que a história humana começou com um ato de desobediência,
refiro-me à mitologia hebraica e grega. Na história de Adão e Eva há a ordem
divina de não comer a maçã, e o homem - ou, para sermos justos, a mulher.
- é capaz de dizer “não”. É capaz de desobedecer e até mesmo de
convencer o homem a partilhar de sua desobediência. Qual o resultado? No mito,
o homem é expulso do Paraíso.
- ou seja, o homem é expulso de uma situação
pré-individualista, pré-consciente, pré-histórica e, se quisermos, pré-humana,
na qual o poderíamos comparar com a situação do feto no ventre materno. É
expulso do Paraíso e forçado a percorrer a estrada da história.
Na linguagem do mito, ele não pode voltar. Na
verdade, não é capaz de voltar. Uma vez
despertada a consciência de si, uma vez cônscio de existir como homem individual,
distinto da natureza, ele não pode retornar à harmonia primitiva que existia
antes dessa consciência. Com seu primeiro ato de desobediência, a história do
homem começa, e esse primeiro ato de desobediência é o primeiro ato de
liberdade.
Os gregos usavam um símbolo diferente, o de
Prometeu, que rouba o fogo dos deuses e comete um crime, que comete um ato de
desobediência, e com o ato de levar o fogo para o homem a história humana - ou
a civilização humana - tem início.
Tanto hebreus quanto gregos mostram que a empresa e
a história humana começaram com um ato de desobediência.
E por que digo que a história humana pode terminar
com um ato de desobediência?
Infelizmente não falo, nesse caso, de mitologia, mas da realidade. Se
uma guerra atômica destruir, dentro de dois ou três anos, metade da população
humana, e levar a um período de completa barbarização - ou se isso acontecer
dentro de dez anos e possivelmente destruir toda a vida na terra -, isso será
provocado por um ato de desobediência.
Ou seja, a obediência dos homens que apertam o
botão aos homens que dão as ordens, e a obediência às ideias que possibilitam
pensar em termos dessa loucura.
A desobediência é um conceito dialético, e todo ato
de obediência é ao mesmo tempo um ato de desobediência. Que quero dizer com
isso? Todo ato de desobediência, a menos que seja uma rebelião ôca, é a
obediência a outro princípio. Desobedeço ao ídolo porque obedeço a Deus.
Desobedeço a César porque obedeço a Deus, ou se falarmos numa linguagem
não-teológica, porque obedeço aos princípios e valores, à minha consciência.
Posso desobedecer ao Estado porque obedeço às leis da humanidade. E se obedeço então realmente serei
desobediente em relação a alguma outra coisa. A questão não é exatamente de
desobediência ou obediência, mas de obediência ou desobediência em relação a
quê e a quem.
Do que disse acima segue-se que o caráter
revolucionário, no sentido em que a expressão está sendo usada aqui, não é
necessariamente aquele que se manifesta apenas na política. Ele existe, na
verdade, na política, mas também na religião, arte e filosofia. Buda, os
Profetas, Jesus, Giordano Bruno, Meister Eckhart, Galileu, Marx e Engels,
Einstein, Schweitzer, Russell são carácteres revolucionários. Encontramos esse caráter também no homem que não está
em nenhum desses setores, num homem cujo “sim” é “sim” e cujo “não” é “não”,
que é capaz de ver a realidade, tal como o menino na história de Andersen A
Roupa do Imperador. Viu que o imperador estava nu, e o que disse correspondia ao
que via. O século XIX talvez tenha sido o período no qual era mais fácil
reconhecer a desobediência, porque foi uma época de autoridade clara, na vida
familiar e no Estado. Foi, portanto, uma época de manifestação do caráter
revolucionário. O século XX é um período bem diferente, e nele o moderno
sistema industrial criou o homem da organização, um sistema de burocracias
imensas que insistem no funcionamento suave daqueles que controla - mas antes
pela manipulação do que pela força. Os administradores dessas burocracias
afirmam que essa submissão às suas ordens é voluntária e procuram convencer a
todos, especialmente com a satisfação material que oferecem, que gostamos de
fazer aquilo que nos mandam. O homem da organização não é aquele que
desobedece, é o que nem sabe que está obedecendo. Como pode pensar em
desobediência, quando não tem nem mesmo a consciência de ser obediente? É apenas um dos “rapazes”, um na multidão. É “certo”.
Pensa e faz o que é razoável - mesmo que isso o mate, e a seus filhos e netos.
Portanto, é muito mais difícil para o homem, na idade industrial burocrática
contemporânea, ser desobediente ou desenvolver um caráter revolucionário do que
o era para o homem do século XIX.
Vivemos numa época em que a lógica dos balanços, a
lógica da produção de coisas, foi estendida à vida dos seres humanos, que se
tornaram inúmeros, tal como as coisas. Coisas e homens são hoje quantidades no
processo de produção.
Repetimos: é muito difícil ser desobediente quando
não se tem nem mesmo a consciência de ser obediente. Em outras palavras, quem pode desobedecer a
um computador eletrônico? Como dizer “não” à filosofia cujo ideal é agir como
um computador eletrônico, sem vontade, sem sentimento, sem paixão?
A obediência hoje não é reconhecida como obediência,
por que é racionalizada como “bom-senso”, como uma aceitação de necessidades
objetivas. Se é necessário produzir, tanto no Leste como no Oeste, um armamento
fantasticamente destruidor, quem poderá desobedecer? Quem se sentiria capaz de dizer “não” se
tudo lhe fosse apresentado não como um ato de vontade, mas como um ato de
necessidade objetiva?
Há outro aspecto relevante na situação atual. Neste sistema industrial que, parece-me, se
torna cada vez mais parecido no Ocidente e no bloco soviético, o indivíduo tem
um receio mortal das grandes burocracias, da grandeza de tudo - do Estado, da
burocracia industrial, da burocracia sindical. Não só tem medo como se sente
terrivelmente pequeno. Quem é o Davi que pode dizer “não” a Golias? Quem é o
pequeno homem que pode dizer “não” àquilo que se tornou, em grandeza e poder
mil vezes maior, a autoridade de há cinquenta ou cem anos? O indivíduo está
intimidado e aceita alegremente a autoridade. Aceita as ordens dadas em nome do
bom-senso e da razão, para não sentir que está dominado.
Resumindo: entendo como caráter revolucionário não
UM conceito ético, mas um conceito dinâmico. Não se é “revolucionário” nesse sentido
caracterológico porque se pronunciem
frases revolucionárias ou se participe de uma revolução. O revolucionário, nesse sentido, é o homem
que se emancipou dos laços de sangue e solo, da mãe e do pai, das lealdades
para com o Estado, classe, raça, partido, religião. O caráter revolucionário é
humanista no sentido de que se sente parte de toda a humanidade, e nada que
seja humano lhe é estranho. Ama e respeita a vida. É um cético e um homem de
fé.
É cético porque suspeita das ideologias como
disfarce de realidades indesejáveis. É um homem de fé porque acredita no que
existe potencialmente, embora ainda não tenha nascido. Pode dizer “não” e ser
desobediente precisamente porque pode dizer “sim” e obedecer a princípios
genuinamente seus. Não está semiadormecido, mas plenamente acordado para as
realidades pessoais e sociais que o cercam. É independente, e o que é deve aos
seus esforços. É livre, e não o servo
de ninguém.
Esse sumário pode sugerir que descrevi a saúde
mental e o bem-estar, e não o conceito do caráter revolucionário. Na realidade,
a descrição dada reproduz a pessoa sadia, viva, mentalmente sã. Minha afirmação
é a de que a pessoa sadia num mundo insano, o ser humano plenamente desenvolvido
num mundo aleijado, a pessoa plenamente desperta num mundo semiadormecido - é
precisamente o caráter revolucionário.
Quando todos estiverem acordados, não haverá mais
profetas ou caracteres revolucionários - haverá apenas seres humanos plenamente
desenvolvidos.
A maioria das pessoas, naturalmente, jamais teve
caráter revolucionário. Mas a razão pela
qual não vivemos mais nas cavernas é precisamente por ter havido sempre um
número suficiente de caracteres revolucionários na história humana para nos
tirar das cavernas e de seus equivalentes. Há, porém, muitos outros que
pretendem ser revolucionários quando na verdade são rebeldes, autoritários ou
oportunistas políticos. Creio que os
psicólogos têm uma função importante no estudo das diferenças de caráter entre
esses vários tipos de ideólogos políticos. Mas para isso é preciso, receio, ter
algumas das qualidades que procuramos descrever aqui: devem ter um caráter
revolucionário.
[1] O estudo foi dirigido por
mim e teve vários colaboradores, Inclusive o Dr. Schachtel. O Dr. P. Lazarsfeld
colaborou como conselheiro estatístico do Instituto de Pesquisas Sociais da
Universidade de Frankfurt, então dirigido pelo Dr. Max Horkheimer.
[2] O método usado foi o exame
das respostas individuais a um questionário aberto, interpretando o sentido
não-intencional, inconsciente, e em contraposição à resposta explícita. Se a
resposta à pergunta, por exemplo, “que homens mais admira na História?” fosse
“Alexandre o Grande, Napoleão, César, Marx e Lênin”, isso era interpretado como
resposta “autoritária”, porque a combinação mostra uma admiração por ditadores
e líderes militares. Se a resposta fosse “Sócrates, Pasteur, Kant, Marx e
Lênin”, era classificada como democrática, porque revelava a admiração por
benfeitores da humanidade e não por pessoas dotadas de poder.
[3] O assunto foi tratado posteriormente, e com melhor
método do que no estudo original, num trabalho de T. W. Adorno e outros, The Authoritarian Personality (N. York,
Harper & Row, 1950).
[4] Tratei desse problema mais detalhadamente em meu
livro anterior, O Medo à Liberdade,
de 1941.
[5] Sermão XVII, Meister Eckhart,
An Introduction to the Study of his
Works, with an Anthology of his Sermons, selecionados por James A. Clark,
N. York, 1957, pág. 235.
[6] Ibid., pág. 189. Atitude muito parecida encontra-se
no Zen-Budismo, na questão relacionada com a independência de Deus, Buda, ou de
qualquer outra autoridade. ‘
[7] Karl Marx, Manuscritos
Econômicos e Filosóficos, incluídos em Conceito
Marxista do Homem, de Erich Fromm.
[8] Cf. um exame mais detalhado dessa questão em E.
Fromm, Meu Encontro com Marx e Freud.
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Publicado originalmente na Revista Marxismo e Autogestão, vol. 1, num. 02, 2014.
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