INTRODUÇÃO À LEITURA DE ERICH FROMM
Carlos Reis
Eurico Carvalho
1.
Fromm e a
Escola de Fraxicoforte
A
formação de Erich Fromm tem as suas raízes no
pensamento crítico da sociedade que se organizou em Francoforte em torno das
figuras de, e em particular, Horkheimer, Adorno, Marcuse e, mais tarde, de
Habermas. Essa escola propunha como modelo de análise um marxismo independente
de forças partidárias enrique- cido com conceitos oriundos da psicanálise» O
seu pensamento era «crítico» no quanto transcendia os quadros observacioinais
sujeitos a estudo, o qual, deste modo, conduzia a
um esforço conclusivo já de
ordem macro-sociológica, aliás dentro dos cânones da socio- logia europeia clássica. Voltando-se para o indivíduo, a «escola de Francoforte», aliás um grupo de indivíduos que organizaram as suas
ideias no âmbito do Instituto de Investigação Social da dita cidade,
recria o movimento iluminista que teve a sua alva na «vira- gem helenística» do
século IVa.C que inicia a preocupação pela emancipação
do indivíduo. Como diz M. Landmann: «O
pensa- mento social da escola de
Francoforte enfrenta a sociologia em- pírica (...). A última é acusada de aceitar os
factos sociais como factos quase neutros,
análogos às ciências naturais [porque]
«o feiticismo dos factos» é
uma «glorificação de tudo quanto existe», e por isso é anti-iluminismo» ( 1).
Em termos de enciclopédia (2)
Fromm é definido como (sic) «neo-freudiano, verbalista e culturalista» — etiqueta esta,
mo en- tanto, por ele rejeitada se as suas consequências forem lidas num contexto antropológico tradicional (aqui a vacuidade é-nos
alheia...). Na verdade, a abordagem frommiana assina-se como uma análise dinâmica das forças económicas, políticas e psicológicas
em jogo na sociedade. Além do
mais Fromm só é freudiano na medida em
que considera por assim dizer, o «espírito da teoria», ou seja, o seu carácter revolucionário enquanto
desmascaramento do pressuposto cartesiano do sujeito todo-consciente; não
seguindo, por outro lado, a «letra da doutrina», isto é, o referente redutor
da sexualidade, é concepção mecanicista do homem cristalizada na Libido por uma «burocracia analítica» e
impotente para abrir novas portas.
Para abri-las, em todo o caso,
impor-se-á por si no quadro dessa «análise dinâmica» o contributo do marxismo.
De facto, o destino futuro da psicanálise impunha necessariamente, desde Freud,
a integração de categorias sociais no conjunto dos seus elementos doutrinários
e técnicos, originalmente voltados para a dimensão individual do paciente.
Sendo nos primórdios apenas um método terapêutico, a sua dinâmica interna
exigia uma extensão ao homem social para um maior alcance da sua penetração
analítica — pro- jecto no qual se empenhou toda uma geração dissidente à
ortodoxia freudiana, a «esquerda psicanalística», nela se destacando Reich e
Marcuse. Com efeito, entre marxismo e psicanálise existe uma possibilidade real
de aproximação das suas teses, de que Fromm pretende ser, aliás, uma específica
síntese efectiva.
Em primeiro lugar, a
psicanálise e o marxismo são ciências materialistas — enquanto uma proclama a compreensão
da bio-- grafia através da
análise da estrutura instintiva e dos conflitos íntra- psicológicos num
contexto individualizado pela experiência de vida (a da infância, em especial)
e pela constituição^ física herdada, a outra traduz a importância
histórica da socio-grafia tendo por base a
correlação das forças e meios de produção no quadro duma luta de classes.
Estão particularmente próximas na
análise da consciência como reflexo de outras forças encobertas, quer como
expressão de uma existência social específica, quer determinada por impulsos de
ordem biológica. Portanto, em ambas as teorias se mostram e se demons- tram as
ilusões da «falsa consciência», seja esta colectiva ou indi- vidual — comitantemente
se supõe uma explicação essencial dessa (consciência, tanto em termos de
«ideologia» como de «racionali- zação», deste modo se instaurando aquilo a que
Fromm chama uma nova «dimensão de honestidade».
Conquanto o homem julgue no seu agir,
agir como julga, deter- minado pelos seus
próprios interesses e motivos, na
realidade é motivado por forças anteriores ou
alheias à sua consciência das mesmas.
Em Marx, por exemplo, a lógica do
processo histórico antecede a lógica subjectiva dos indivíduos nele envolvidos.
Numa sociedade de classes a consciência do homem é necessariamente falsa cons-
ciência, ideologia, a qual dá ares de racionalidade a algo que, devido às condições inerentes a uma sociedade
de classes, e em si irra- cional.
A percepção consciente da realidade como motor da mu- dança é,
para Marx, uma condição de progresso social e revolução, tal como é para
Freud a condição para a solução terapêutica da doença mental. Marx, diz-nos Fromm, alheio aos
problemas de terapia
individual, não falou da percepção consciente como força motriz da mudança
individual, mas, considerando todo o
seu sis- tema, de modo nenhum
constitui um esforço ilegítimo fazer essa conexão*
2.
Fromm e a Psicologia Social Analítica
A síntese frommia'na de marxismo e psicanálise envolve no quadro do
progresso histórico o domínio social não só da Natureza mas também do próprio
ser natural do homem, no qual as «racio- nalizações» se inscrevem como
ideologias do comportamento social- mente exigido no âmbito mais vasto das
relações entre indivíduos influenciados e
determinados pelo esquema económico-social em que encontram ou não a realização das
suas necessidades. Por isso mesmo o modo como as
ideologias são produzidas
e funcionam só pode ser correctamente
perspectivado se chegarmos a
com- preensão do nosso sistema de impulsos. Assim o objectivo' da Psicologia
Social Analítica consistirá na apreensão
do verdadeiro nó conceptual entre marxismo e
psicanálise: a caracterização do dispositivo instintivo de um grupo, do seu comportamento libidinal e predominantemente incosciente,
em função da sua estrutura sócio-- económica. A psicanálise pode, pois,
enriquecer a concepção global do marxismo num ponto específico. Pode fornecer
um conhecimento mais objectivo de
um dos factores essenciais no processo social:
a 'natureza do próprio
homem. O próprio complexo dos instintos do ser humano é uma
das condições «naturais» a fazer parte da infra-estrutura do processo social Porque o materialismo
histórico requer uma psicologia,
isto ét uma ciência
da estrutura psíquica do
homem, sem dúvida, a psicanálise surge-nos como a primeira disciplina a
responder a essa necessidade — e nessa medida tem cabimento um projecto como
o da Psicologia Social Analítica.
Se Marx
afirma que os homens são
os produtos das suas ideologias,
a Psicologia Social Analítica pode descrever empirica- mente o processo de produção dessas mesmíssimas ideologias e
mais ainda, a interacção dos factores
«naturais» e sociais. Pode mostrar como a situação económica é
transformada em ideologia através dos impulsos do indivíduo. Por outro lado,
não só o meca- nismo cultural serve para dirigir as forças libidinais em
direcções específicas, socialmente desejadas, mas serve também para enfra-
quecer as forças da libido até que deixem de constituir uma ameaça à estabilidade social. Por conseguinte, toda
uma parte do aparelho cultural serve para formar a atitude socialmente exigida
de modo sistemático e metódico.
A estrutura
libidinal (3) (mais tarde Fromm dar-lhe-á o nome de «carácter social») é o produto da influência
das condições sócio-- económicas sobre os impulsos humanos; por sua vez, é um factor importante no condicionamento da
evolução dos vários níveis da sociedade e
no conteúdo
da superstrutura ideológica. Em suma, a
estrutura libidinal de uma sociedade
é o meio pelo qual a economia exerce a
sua influência
nas manifestações intelectuais e mentais
do homem.
A Psicologia Social Analítica tem, pois, claramente, o
seu lugar no contexto do materialismo histórico. Investiga um dos factores naturais actuante nas relações entre a sociedade e a natureza: o
domínio dos impulsos humanos é o papel activo e passivo por eles desempenhado no processo social Assim averigua acerca da sua função decisiva e mediadora entre a base económica e a formação das
ideologias* O seu método é o da psicanálise freudiana clássica aplicada aos
fenómenos sociais♦ Explica as atitudes 'compartilhadas e sociavelmente relevantes em função
do processo de adaptação do mecanismo dos impulsos às
condições da vida sócio-económica da sociedade.
Daí a Psicologia Social Analítica —
na terminologia from- miana — não se
limitar apenas à rejeição de alguns aspectos do freudismo, mas também faz por
conseglir complementá-lo noutros — o próprio carácter dinâmico, já referido, da
ciência analítica freu- diana clama
por essa integração complementar. Aliás, segundo Fromm,
a crise da psicanálise («burocracia analítica», «psicologia do sofá», etc) é uma crise que
se insere no contexto global e angustiante da própria crise
vertical do mundo contemporâneo,
3, Fromm e a Patologia da Normalidade
Rejeitando todo o relativismo sociológico, através do
qual todo o carácter patológico é assimilado pragmaticamente; comoi desvio individual da norma vigente e
funcional de uma determinada socie" dade,
Fromm considera a existência de
um critério universal de saúde
mental para a espécie humana. Pressupondo a ideia de uma natureza humana, esse critério, porque universal,
porá em causa toda a justificação
«estatística» da normalidade, e
nessa medida postula como mentalmente
são tudo aquilo que vá de encontro à satisfação não das exigências sociais mas
das necessidades criadas pela situação
especificamente humana.
Admitindo-se essas necessidades, a estrutura do problema
altera-se: a saúde mental passa a avaliar-se pelo grau de adaptação da
sociedade à natureza humana, e não o contrário,
a)
A Situação Humana
'Partindo do conceito marxista da
Natureza Humana, Fromm procura correlacioná-lo com a noção freudiana de
inconsciente, autorizado pela própria concepção marxiana de impulsos consti- tuintes
do ser natural do homem.
Nos termos da teoria de
Marx, o comportamento humano é condicionado
por variáveis «constantes ou fix [a] s, como a fome e o desejo sexual, que são
parte integrante da natureza humana e só podem variar na forma -e direcção>
assu- midas em diversas culturas; quanto às variáveis relativas não fazem parte integrante da natureza humana, mas [como diz Marx]
devem a sua
origem a certas estruturas
sociais e condições de produção e
de comunicação» ( 4 ),
A ideologia traduz os valores e objectivos propagados por
uma sociedade; por outro lado, os impulsos relativos resvalam para defeitos
socialmente modelados, quer dizer necessidades artificiais, isto é,
justificações meramente ideológicas do «status quo» social. Desta forma ficam
interligadas ideologia e alienação, enquanto perversão implícita duma natureza
humana,
O ser humano superou os quadros coercivos das estruturas neurológicas herdadas em que se inscreve
a harmonia animal com a
Natureza. Por isso, a condição humana é deveras peculiar; Noto- riamente surge
a consciência. Contrapondo-se à vida animal, sim- plesmente «vivida», passiva e inconsciente,
o homem transcende a sobrevivência existindo esta
na maldição do seu destino
e na ingente dicotomia da sua situação
existencial, porque a história é
ele próprio. Conquistou-se a si mesmo num longo processo de ultrapassagem de
uma fase narcísica de idolatria e totemismo, atin- gindo assim os primórdios da
objectividade. Mas como a
cada passo se abre o desconhecido,
temos medo. Daí resulta a inelutável polaridade
da existência — a encruzilhada do ser:
para trás, a loucura incestuosa da
refressão; adiante, o abismo do insondável,
É na tensão dessa polaridade existencial que todas as
necessi- dades humanas essenciais são determinadas, A sua consciência
exige uma estrutura de orientação, dentro de uma cultura que res- ponda ao problema
fundamental da existência. Tal resposta é a definição própria de religiosidade, porque enquanto solução para o sentido
da vida, enquanto horizonte, o cultural é sempre
religioso e vice-versa. Transcendendo a Natureza o homem transcende-se a si
mesmo, e neste movimento constrói a História,
Deduzidas da condição humana, as
necessidades fundamentais, são a expressão dos
factores reais que determinam a singularidade da existência» A sua satisfação acompanha a
prossecução do pro- cesso histórico de auto-criação, efectivando-se aí a
integridade da saúde mental. Rompendo a
união primordial com a Natureza, abraça a solidão — o preço,
afinal, de ser diferente. Tem de cons- truir
o mundo dos homens, porque apearas se poderá encontrar no relacionamento com os seus
semelhantes, A orientação produtiva realiza a comparticipação e a actividade
criadora, concretizando-se nas várias esferas, desde o pensamento, onde a
compreensão ade- quada da realidade e condição da construção indeformada da
mesma e de si próprio, até à dimensão da acção e do sentimento, ou
seja, da arte e do amor — neste
deve cumprir-se o paradoxo duma união que mantém a identidade
de cada um dos poios,
concorrendo para a plenitude da relação amorosa uma
face erótica e outra fraterna, conjugando a função sexual com o aspecto
qualitativo' duma fusão que promove a igualdade.
Doutro modo teremos uma preversão
do amor que, distanciado de si próprio, se perde em labirintos do sadoi-masoquismo, A qualidade particular de amar transcende
o próprio objecto opondo-se à relação simbiótica, na qual o
senti- mento de identidade é
procurado na submissão ou no seu contrário, porque em ambos se paga o tributo
da depeindência de subsumir-se no valor dos
outros. Com efeito, o amor pressupõe a
liberdade impossível na simbiose,
O fracasso de qualquer tipo
de relação é o fracasso absoluto da própria existência — o narcisismo é a fuga para dentro
de si, aonde tudo é ilusão. O homem
não controla a realidade e muito menos se controla, já que o narcisismo é o
polo oposto da objecti- vidade, da razão e do amor, A ausência de qualquer tipo
de relação conduz a demência das religiões particulares.
c)
A Alienação
A orientação mercantil inocula uma finalidade compulsiva
e irracional no consumo que se torna um fim em sL Fomenta-se uma atitude receptiva para escoamento das necessidades
artificiais que o sistema
desenvolve a fim de manter o princípio da produção pela produção, quer dizer do consumo pelo
consumo, indispensável à sua própria sobrevivência que se impõe como objectivo
último.
Este
trabalho iniciou-se na perspectiva de realizar uma, sinopse interpretativa da
obra de Erich Fromm, à «Psicanálise da Sociedade Contemporânea»; posteriormente evoluiu no sentido de completar o circulo hermenêutico, inserindo a
obra na totalidade do pensamento do autor.
(!) TAR, Zoltan, A Escola de Francoforte, '1986, Edições 70, p. 13-14
(2) Enciclopédia Luso-Brasileira, Lisboa, Verbo, Tomo 8, pp. 1721-1722.(3) Sobre a crítica de Fromm a teoria Freudiana da Libido transcreve- mos uma passagem elucidativa, «...toda e qualquer sociedade possui uma estru- tura Libidinal distinta, tal como tem as suas próprias estruturas económicas, social, política e cultural. Essa estrutura Libidinal é o produto da influência das condições sócio-económicas sobre os impulsos humanos; por sua vez, é um factor importante no condicionamento da evolução emocional nos vários níveis da sociedade e no conteúdo da superstrutura ideológica. A estrutura Libidinal de uma sociedade é o meio pelo qual a economia exerce a sua influência nas mani- festações intelectuais e mentais do homem». Estamos portanto longe do inatismo mecanista da Libido Freudiana. No texto citado segue-se uma nota que é do maior interesse transcrever: «Aquilo a que chamei aqui a «estrutura Libidinal da sociedade», usando a terminologia Freudiana, passei a designar, nos meus tra- balsos ulteriores, como «carácteir social»; apesar da mudança na teoria da Libido, os conceitos são os mesmos». FROMM, Erich, A Crise da Psicanálise, oitava edição, Rio de Janeiro, 1971, p» 159.
(4) FROMM, Erich, Conceito Marxista do Homem, oitava edição, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p. 35.
(5) Opus, cit, p. S5.
(6) FROMM, Erich, Psicanálise da Sociedade Contemporânea, décima edição, Rio de Janeiro, 1983, pp, !lili7-dT8.
RÉSUMÉ de «Introduction à la Pensée de Erich Fromm»
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