Marcuse e a Crítica ao Neofreudismo
Herbert Marcuse, em uma de suas mais famosas obras, Eros e Civilização, realiza, após
analisar a dinâmica histórica dos instintos e a oposição entre “princípio de
prazer” e “princípio de realidade”, uma crítica ao que ele denomina neofreudismo. Apesar desta obra poder
ser criticada em muitos aspectos, nos limitaremos, neste artigo, a fazer uma
crítica da sua crítica ao neofreudismo. Acontece que, para realizarmos isto,
devemos, anteriormente, abordar o fundamento marcuseano da crítica ao
neofreudismo, o que nos remete à sua obra como um todo. Isto, entretanto, não
nos obriga a analisar detalhadamente toda a obra de Marcuse, mas tão-somente
seu equívoco fundamental.
Qual é o equívoco fundamental que perpassa todo o
livro de Marcuse (1986)? Muitos já observaram qual foi (MaCintyre, 1978; Fromm,
1992). O próprio Marcuse o revela (mas não o assumindo como equívoco) no
subtítulo e no prefácio de Eros e
Civilização: o que ele pretende fazer é uma interpretação filosófica do pensamento de Freud ou
esboçar uma filosofia da psicanálise.
É aí que cabe a pergunta: qual é o sentido de uma
“filosofia da psicanálise”? E isto nos remete a uma questão, mais ampla, que é
a seguinte: qual é o sentido da filosofia na sociedade contemporânea? Podemos
dizer que, no mundo atual, a consciência burguesa sistematizada possui dois sentidos:
um que é comandado pela lógica do empiricismo e outro que é dirigido pela
lógica da especulação pura e das abstrações metafísicas, expresso, por exemplo,
pela filosofia. As “novas tarefas do pensamento” não salvam a filosofia do seu
fim e de nada adianta as lamentações heiddegerianas. A filosofia é coisa do
passado. Ela não passa de uma sobrevivência anacrônica na sociedade capitalista[1].
É aí que se revela toda a esterilidade do projeto
marcuseano de uma “filosofia da psicanálise”. Isto, entretanto, não quer dizer
que não haja nenhuma contribuição de Marcuse à psicanálise, mas apenas que tal
contribuição é muito restrita e é acompanhada por inúmeros equívocos. É devido
as suas abstrações metafísicas que Marcuse pode postular e defender teses
freudianas que não possuem nenhuma validade teórica, tais como o “complexo de
Édipo” e o “instinto de morte”. Se Marcuse tivesse aprofundado sua análise no
sentido de entender as raízes sociais das concepções psicanalíticas, teria
contribuído bem mais e percebido alguns equívocos da psicanálise, tal como a
tese do “instinto de morte”, produto derivado da visão dos psicanalistas a
partir das guerras mundiais (Viana, 2002).
A obra de Marcuse é, sem dúvida, perpassada por uma intenção de se elaborar uma teoria
revolucionária. Acontece que a intencionalidade não é suficiente para se
elaborar uma teoria revolucionária. Aliás, ela pode, no caso de certos
indivíduos (devido às características de sua personalidade, suas condições de
vida, etc.) se desenvolver de tal forma que se torna até mesmo prejudicial em
alguns aspectos. Marcuse busca dar uma fundamentação “biológica” à revolução e
opõe o “biológico” ao “social”, tomando partido do primeiro, e assim pode
postular que tudo que é “biológico” é bom e tudo que é “social” é mau. O bem é
personificado no “biológico” e o mal é personificado no “social”. Ora, mas é o
próprio Marcuse que coloca que no “biológico” existe uma dinâmica histórica e,
no entanto, não reconhece tal dinâmica no “social” e é por isto que somente
através da “libertação do biológico” (o que inclui o sadismo e a coprofilia)
contra o social que se realizará a emancipação humana.
Marcuse vê, no “biológico”, uma contradição entre Eros
(instintos sexuais) e Tanathos (instinto de morte) e no “social” não vê contradição
alguma. Por conseguinte, o “biológico” é dinâmico e o social é estático.
Prosseguindo o raciocínio, pode-se dizer que o “social” só se transformará
através de fatores exógenos, já que lhe falta uma dinâmica interna, uma
contradição interior. Para Marcuse, esse “fator exógeno” só pode ser os
instintos reprimidos pela civilização, ou seja, o “biológico”, já que o
“social” não só é estático como também é repressor. A luta entre repressor
(civilização) e reprimido (instintos) expressa a dinâmica da história. É por
isso que Marcuse pode recusar a análise da historia real das sociedades e se
refugiar na ficção freudiana da “horda primordial”, pois, caso contrário, teria
que reconhecer que as transformações sociais são produtos da dinâmica das lutas
sociais e que oposição entre “Eros” e “civilização” (ou entre “biológico” e o
“social”) só existe porque na própria civilização existe uma contradição e é
justamente esta que produz aquela[2].
Por conseguinte, não é a dinâmica do biológico, e,
conseqüentemente, de Eros contra a civilização que expressa a dinâmica da
historia e sim o conjunto das relações sociais marcadas pela contradição (luta)
de classes. Esta, por sua vez, cria a dinâmica no “biológico” e expressa o
movimento histórico da humanidade. Uma dinâmica contraditória imanente no
biológico é inexistente, embora não o seja em determinadas sociedades e isto
significa que onde havia contradição e mudança (na sociedade) Marcuse viu
apenas a permanência e para postular a revolução teve que “inventar” um lugar onde
houvesse a manifestação da contradição. Tal lugar escolhido por Marcuse é o
mundo biológico do corpo humano.
Ao deslocar a possibilidade de mudança histórica para
o mundo biológico, Marcuse se vê obrigado a defender como revolucionário todas
as manifestações “biológicas”. Ao retirar a historicidade da sociedade e da
relação entre sociedade e necessidades humanas (“instintos”), Marcuse deve
“naturalizar” e “justificar” tudo que aparenta ser manifestação biológica. Ao
criticar e negar a sociedade e não ver nela mesma a possibilidade de mudança,
Marcuse deve afirmar e defender tudo que seja combatido por esta mesma
sociedade. É partindo dessas premissas que Marcuse pode postular a existência
do “complexo de Édipo”, do “instinto de morte”, a “liberação das perversões
sexuais”, etc. Como, de um ponto de vista histórico-concreto, isto não é
defensável, então Marcuse deve apelar para a “filosofia da psicanálise” e
“fundamentar” suas teses em um conjunto de abstrações metafísicas.
É com base neste equívoco fundamental que Marcuse irá
criticar o que ele chama de neofreudismo.
Este é representado por nomes como os de Erich Fromm, Karen Horney, Clara
Thompson, H. Sullivam, P. Mulahi e outros. Marcuse começa sua crítica ao
neofreudismo dizendo que “a psicanálise alterou a sua função na cultura de
nosso tempo, de acordo com as mudanças sociais fundamentais que ocorreram com a
primeira metade do século” (Marcuse, 1986, p. 205). Ela
“Era uma teoria radicalmente crítica. Mais
tarde, quando a Europa central e oriental se encontrava em convulsão
revolucionária, tornou-se claro até que ponto a psicanálise ainda estava
vinculada à sociedade cujos segredos revelou. A concepção psicanalítica do
homem, com sua crença na imutabilidade básica da natureza humana, impôs-se como
‘reacionária’; a teoria freudiana parecia implicar que os ideais humanitários
do socialismo eram humanamente inatingíveis. Então, as revisões da psicanálise
começaram a ganhar impulso” (Marcuse, 1986, p. 205).
A psicanálise
mudou de função: era crítica e passa a ser conservadora. Esta formulação não
deixa de ser estranha, pois sua justificativa está no fato da concepção de uma
natureza humana imutável refutar os ideais socialistas e foi isto que provocou
as revisões e depois se diz que estas revisões foram conservadoras. É claro que
a intenção pode ter sido traída pela forma como o objetivo foi perseguido, mas
mesmo assim esta formulação simples de Marcuse não deixa de ser contraditória.
Mas deixando isto de lado, podemos dizer que é neste contexto, segundo Marcuse,
que surge o “revisionismo” (de direita: Jung; de centro: Fromm, Horney, etc.;
de esquerda: Reich).
Marcuse começa a fazer uma contextualização histórica
mas acaba se perdendo no meio do caminho. Segundo ele, a psicanálise era
crítica passa a ser conservadora. Isto ocorre quando ela demonstra sua
vinculação com a sociedade e este fato acontece em uma época de convulsão
social. É por isto que surgem os revisionistas.
Acontece que Marcuse toma a sociedade
como uma abstração metafísica. Se ele observasse que “a sociedade” é dividida
em classes sociais antagônicas, então veria que os “revisionistas” expressam
uma concepção individual que é, ao mesmo tempo, uma concepção de classe. C. G.
Jung, por exemplo, colocou que a religião poderia proteger a civilização do
perigo do comunismo e do fascismo (Jung, 1988).
Assim, se Marcuse tivesse percebido que o período de
“convulsão revolucionária” atinge os indivíduos e intelectuais sob formas
diferentes, teria visto que um período de acirramento das lutas de classes leva
a uma exasperação do posicionamento político e intelectual dos representantes
literários, teóricos ou ideológicos das classes sociais. Aliás, este período
histórico, é marcado por este tipo de posicionamento político de Jung e isto
ocorre não só na psicanálise como também na antropologia[3]
e outras ciências humanas. Este momento histórico marca um “endurecimento” do
direitismo de Jung e simultaneamente a aproximação de Wilhelm Reich com o KAPD
– Partido Comunista Operário da Alemanha, que reunia as tendências esquerdistas
da Alemanha, onde se destacavam os comunistas conselhistas – e o surgimento da sex-poll (Reich, 1976). Superando essa
reificação do conceito de sociedade, pode-se ver que não se pode falar de um
bloco monolítico chamado de “neofreudismo”.
A principal crítica que Marcuse realiza aos
revisionistas é a de que eles obliteraram a
“discrepância entre teoria e terapia
assimilando a primeira à segunda. Essa assimilação teve lugar de duas maneiras.
Primeiro, os conceitos mais especulativos e ‘metafísicos’ não sujeitos a
qualquer verificação clínica (tais como o instinto de morte, a hipótese da
horda primordial, a morte do pai primordial e suas conseqüências) foram
minimizados ou francamente rejeitados. Além disso, nesse processo alguns dos
mais decisivos conceitos de Freud (a relação entre id e ego, a função do
inconsciente, o âmbito e o significado da sexualidade) foram redefinidos de
modo tal que suas conotações explosivas foram quase eliminadas por completo”
(Marcuse, 1986, p. 212).
Os “revisionistas”, segundo Marcuse, buscam, ao
contrário de Freud, “acentuar o
positivo” e valorizar a influência ambiental (cultural). Por isto, eles criam
uma falsa imagem da civilização. Marcuse diz que o abandono de certos conceitos
de Freud se deu devido à assimilação da teoria à terapia. Acontece que o
questionamento dos conceitos citados por Marcuse não precisa ser feito do ponto
de vista da terapia, pois do ponto de vista da teoria isto não só é possível
como necessário. E, desde que essa teoria não seja, na verdade, uma ideologia,
o abandono de diversos “conceitos” freudianos se faz necessário sem referência
à terapia ou à verificação clínica. E se há uma redefinição em alguns
pressupostos básicos, isso, evidentemente, acarretará redefinições em outros.
Se são “explosivos” e deixam de ser, isto só tem importância se deixaram de
corresponder à realidade ou não, pois teses pretensamente revolucionárias, se
não forem verdadeiras, em nada colaboram com o processo revolucionário. Aliás,
pode até ser mais um obstáculo ao desenvolvimento de uma práxis revolucionária.
Marcuse passa da crítica de Fromm para Sullivam e
outros, como se houvessem apenas “semelhanças”. Aliás, Marcuse afirma duas
coisas sugestivas na sua “metodologia” de crítica que lhe retira o aspecto teórico
em favor do ideológico: “a discussão subseqüente diz unicamente respeito aos
últimos estágios da psicologia neofreudiana, em que as características
regressivas do movimento parecem predominantes”; “a discussão seguinte
negligenciará as diferenças entre os vários grupos revisionistas e
concentrar-se-á na atitude teórica comum a todos eles” (Marcuse, 1986, p.
210-212).
Vê-se que Marcuse realiza um “corte teórico” e um
“corte histórico”, ao estilo Foucault. Tal procedimento, entretanto, é
ideológico. Em primeiro lugar, não é possível abordar a obra de um autor ou de
um conjunto de autores realizando “cortes históricos”, ou seja, sem levar em
consideração o seu processo de formação, sua continuidade e mudança, seu
caráter intrínseco, as questões colocadas, as respostas dadas, definitivas ou
provisórias (que mais tarde buscar-se-á fundamentá-las), bem como as mudanças
sociais que produzem ressonâncias nas suas concepções. Em segundo lugar, um
“corte teórico” não possui validade teórica se: a) não houvesse realmente uma
concordância entre todos os autores no aspecto analisado; b) se este aspecto
não se referisse ao essencial do pensamento de cada autor; c) se os pontos de
vista não possuíssem a mesma fundamentação e o mesmo objetivo. Contudo, Marcuse
não comprova nada disto. Ele passa de Mullahi a Fromm ou de Sullivam a Horney
com a maior facilidade e sem nenhum rigor teórico.
Marcuse também diz que os neofreudianos utilizam a
“filosofia moralista do progresso”. Ora, o que Marcuse faz com Fromm é o mesmo
que ele acusa dos “neofreudianos” fazerem com Freud: torna-os passivos
representantes conservadores da sociedade contemporânea, enfatizando apenas os
aspectos considerados por ele como “conservadores” e abolindo os aspectos
críticos. As diferenças fundamentais entre Fromm, Horney, Sullivam, Thompson,
etc., são “esquecidas”, tal como na afirmação de Marcuse de que os
“neofreudianos” recusam a idéia de existência de um “instinto de morte”, sendo
que Fromm o aceita, enquanto “potencialidade secundária” (Fromm, 1976). Marcuse
afirma que os “revisionistas” opõem o “bem” e o “mal” e, na verdade, também faz
isto em seu livro que opõe “Eros e civilização” e “Freud e os revisionistas”.
Vejamos outro exemplo de desconsideração pelas
diferenças nos neofreudianos. Marcuse, baseando-se numa citação de Sullivam,
diz:
“a profunda conformidade mantém seu predomínio nessa
psicologia, que a todos os que ‘se desprendem de suas antigas amarras’ e se
tornam ‘radicais’ considera suspeitas de neurose (a descrição ajusta-se a todos
eles, de Jesus a Lênin, de Sócrates a Giordano Bruno)” (Marcuse, 1986, p. 219).
Acontece que isto não é “consenso” entre os
“neofreudianos”. Basta ler Fromm para ver que, para ele, Jesus, Lênin, Sócrates
e outros são “profetas” e “revolucionários” e não “neuróticos”[4].
Ou, então, basta ler as considerações sobre a neurose, o normal e o anormal em
K. Horney[5]
e no próprio Fromm (1976) para ver que muitos “revisionistas” discordam
totalmente de Sullivam.
Isto, entretanto, não quer
dizer que todas as críticas de Marcuse sejam equivocadas. Ele realiza algumas
críticas corretas a Erich Fromm. Este afirma que se deve realizar o
“desenvolvimento das potencialidades humanas” e considera que isto é uma
responsabilidade individual e não uma luta política que só possibilitará tal
desenvolvimento com a transformação social. O “desenvolvimento das
potencialidades humanas” numa “sociedade repressiva” (tal como é reconhecida
por Fromm) é uma incoerência, mas apenas da forma como Fromm o coloca, já que
tal desenvolvimento, mesmo sendo parcial, é possível (para alguns indivíduos,
sob o capitalismo, e para a coletividade somente no “pós-capitalismo”, na
sociedade autogerida), mas somente através de uma práxis revolucionária. Outra
crítica correta é o “estilo” de “sermão” que realmente está presente em alguns
dos neofreudianos.
Marcuse comete um equívoco ao tratar da idéia burguesa
de produtividade comparando-a com a dos “neofreudianos”, pois, pelo menos no
caso de Fromm, a idéia de produtividade – como o próprio Marcuse reconhece nos
“revisionistas” – está ligada à “livre realização do homem”, ou seja, possui um
sentido diferente (Fromm, 1961). Marcuse diz que a ambigüidade do termo é
utilizada pelos “revisionistas” para aparecerem como “críticos”, quando, na
verdade, são conservadores. Tal crítica só teria validade se Marcuse comprovasse
que os “neofreudianos” possuíssem tal ambigüidade ou esta palavra no sentido
burguês, o que ele não faz.
Marcuse também critica o “moralismo” de Fromm. Este,
segundo Marcuse, demonstrou o caráter repressivo do processo de internalização
como poucos analistas fizeram e depois retoma “a ideologia da internalização”.
As pessoas “normais” e “ajustadas” são condenadas porque traíram o “eu
superior”, os “valores humanos”. Em melhor situação interior estão aqueles que
conquistaram uma solidez moral interior. Marcuse continua:
“O estilo sugere o Poder do Pensamento
Positivo a que a crítica revisionista sucumbe. Espúrios não são os valores, mas
o contexto em que eles estão definidos e proclamados: ‘força interior’ tem a
conotação daquela liberdade incondicional que pode ser praticada mesmo sob
grilhões e que o próprio Fromm certa vez denunciou na sua análise da reforma”
(Marcuse, 1986, p. 222).
Assim, as questões sociais tornam-se espirituais e sua
solução torna-se uma tarefa moral. Entretanto, esta crítica só seria correta se
os “valores humanos” defendidos por Fromm fossem os mesmos que são
predominantes na sociedade burguesa. Marcuse não comprova isto e dificilmente
poderia alguém sustentar que Fromm defende os valores dominantes de nossa
sociedade.
Tal crítica seria bem endereçada se colocasse em
evidência o caráter individualista da
solução apresentada por Fromm. É o indivíduo que deve transformar-se e
transformar a sociedade. É claro que o indivíduo, a moral, os valores, etc.
possuem um papel no processo de transformação social, mas para que esta se
realize ou se torne uma possibilidade real, é necessária a ação das classes
sociais. Fromm coloca a questão das classes sociais de forma superficial e isto
ocorre, principalmente, quando ele trata do pensamento de Marx. Acontece que o
silêncio de Fromm sobre as classes sociais não é criticado por Marcuse. Isto
por um motivo muito simples: na obra de Marcuse, Eros e Civilização, há também um completo silêncio sobre as classes
sociais. Ele trabalha com as abstrações metafísicas de “indivíduo” e
“sociedade”, opondo uma à outra, e é por isto que ele pode considerar Freud um
“revolucionário”. Prosseguindo com a construção de sua “filosofia da
psicanálise”, Marcuse postula, contra os “neofreudianos”, a existência do
“complexo de Édipo” e do “instinto de morte”, dizendo que eles minimizam o grau
em que os impulsos são modificáveis segundo a teoria freudiana. Na verdade, o
que os “revisionistas” fazem é rejeitar parte da teoria freudiana e não
“minimizar” seus fundamentos.
Marcuse passa a criticar Clara Thompson, que afirma
que a finalidade da “escola cultural em psicanálise” excede a preparação do
homem para submeter-se às restrições sociais e procura, na medida do possível, libertá-lo das exigências “irracionais” da
sociedade e torná-lo capaz de desenvolver suas potencialidades, assim como para
assumir a “liderança” da construção de uma “sociedade mais construtiva”.
Marcuse comenta:
“A tensão entre saúde e conhecimento, normalidade
e liberdade, que animou toda a obra de Freud, desaparece aqui, um condicional
‘na medida do possível’ é o único vestígio que resta de explosiva contradição
na finalidade. A ‘liderança na edificação de uma sociedade mais construtiva’
terá de combinar-se com o funcionamento normal na sociedade estabelecida”
(Marcuse, 1986, p. 222).
Segundo este trecho, vê-se que esta autora reconhece a
existência de “exigências irracionais da sociedade” e que é necessário
superá-las e para isso é preciso, na medida do possível, no interior da atual
sociedade, que, obviamente impõe limitações a um pleno desenvolvimento das
potencialidades humanas, tornar as pessoas capazes de se libertarem dessas
exigências irracionais e prepará-las para lutar pela construção de uma nova
sociedade. É claro que Thompson poderia assumir uma posição mais radical, mas a
contradição subsiste e de forma mais visível e consciente do que em Freud e por
isso a argumentação de Marcuse sobre o maior conservadorismo dos
“neofreudianos” é, neste trecho, destituída de fundamentação.
Marcuse encerra sua crítica afirmando:
“A mutilação da teoria do instinto completa a
reversão da teoria freudiana. A direção interior da última era (em evidente
contraste com o ‘programa terapêutico’ do id para o ego) da consciência para o
inconsciente, da personalidade para a infância, do indivíduo para os processos
genéricos. A teoria movia-se da superfície para a profundidade, da pessoa
‘acabada’ e condicionada para as suas origens e recursos” (Marcuse, 1986, p.
31).
Marcuse acrescenta que este “movimento era essencial
para a crítica freudiana da civilização”. Do ponto de vista analítico, Freud
realmente vai do “ego” para o “id” e volta do “id” para explicar o “ego”.
Acontece que, do ponto de vista da posição pessoal de Freud na luta entre “id”
e “ego”, ele fica do lado do “ego”. Esta é a posição de alguns “neofreudianos”
e não a de todos. Aliás, alguns se colocam do lado do “id” (não no sentido
freudiano) e contra o “ego”. Por conseguinte, esta crítica também não observa o
real caráter das posições de Freud e as diferenças existentes nos diversos
representantes do que Marcuse chama de “neofreudismo”.
Neste sentido, o que Erich Fromm chamou de “o pretenso
radicalismo de Herbert Marcuse” não deixa de ser verdadeiro no que se refere a
esta obra, embora não se possam retirar os méritos que persistem e a
contribuição apresentada por Marcuse. Em síntese, podemos dizer que as
limitações existentes nas concepções de Marcuse, ou seja, a limitação da
“filosofia da psicanálise”, faz com que ele elabore diversas críticas
equivocadas ao “neofreudismo”, considerando-se alguns de seus representantes,
em especial, Fromm, Horney e Thompson.
Desta forma, podemos dizer que a crítica de Marcuse ao
neofreudismo apresenta mais equívocos que acertos e isto tem sua origem em sua
insistência em apelar para uma filosofia da psicanálise, provocada, por sua
vez, pelo seu desencanto com a teoria marxista da revolução, segunda a qual o
proletariado seria o sujeito revolucionário que poria fim ao atual estado de
coisas[6].
Se o proletariado perde seu caráter de classe revolucionária da nossa época,
então só resta aos críticos da sociedade existente buscar outro fundamento para
postular a derrocada do capitalismo e a construção de uma nova sociedade. É isto
que se vê em Marcuse, que encontra nos instintos reprimidos o fundamento da
revolução de nossa época em substituição ao proletariado, que, segundo muitos,
estaria integrado na sociedade capitalista. É daí que surge a filosofia da
psicanálise de Marcuse e, conseqüentemente, sua crítica aos neofreudianos. E é
aí que se encontra o seu equívoco fundamental.
Referências
Bibliográficas
Fromm, Erich. A Descoberta do Inconsciente Social. Rio de Janeiro, Manole, 1992.
Fromm, Erich. Análise do Homem. 2a Edição, Rio De Janeiro,
Zahar, 1961.
Fromm, Erich. O Caráter Revolucionário. In: O
Dogma de Cristo. 5a Edição, Rio De Janeiro, Zahar, 1986.
Fromm, Erich. O Coração do Homem. Rio De Janeiro, Zahar, 1976.
Horney, Karen. A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo. 10a
Edição, São Paulo, Difel, 1984.
Jung, C. G. Presente e Futuro. Petrópolis, Vozes, 1988.
Korsch, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
Macintyre, D. As Idéias de Marcuse. São Paulo, Cultrix, 1978.
Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud.
8a Edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
Marcuse, Herbert. Razão e Revolução. 4a Edição, Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1988.
Marcuse, Herbert. Sobre o Conceito de Negação na Dialética. In: Idéias Sobre Uma Teoria Crítica da Sociedade. 2a
Edição, Rio De Janeiro, Zahar, 1981.
Mead, Margaret. Sexo e Temperamento. 3a Edição, São Paulo,
Perspectiva, 1988.
Reich, Wilhelm. O Que é Consciência De Classe? Lisboa, Textos Exemplares, 1976.
Viana, Nildo. A Filosofia e Sua Sombra. Goiânia, Edições Germinal, 2000.
Viana, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições
Germinal, 2002.
[1] O interessante é que o próprio Marcuse havia
reconhecido isto e colocado em evidência que a teoria marxista da sociedade
teria significado uma negação da filosofia e, neste contexto, sua superação
histórica pela “teoria social” (veja: Marcuse, 1988). Karl Korsch já havia, bem
antes, retomado a tese de Marx sobre o fim da filosofia (Korsch, 1977). Também
dedicamos um trabalho para retomar esta tese (Viana, 2000).
[2] O processo de exploração e dominação, a luta de
classes, que estão na base da sociedade capitalista cria um conjunto de
relações sociais fundadas na repressão e é isto que gera os problemas psíquicos
e o confronto entre necessidades/potencialidades humanas e sociedade e a
abolição da repressão é condição de possibilidade para o fim destes conflitos.
Veja sobre isso o ensaio Universo
Psíquico e Reprodução do Capital.
[3] Este é o caso, entre outros, da antropóloga Margaret
Mead, que em 1931 fez uma série de pesquisas em sociedades indígenas sobre a
relação entre sexo e temperamento e concluiu que não se pode falar em uma
“natureza humana imutável” e que por isso não se pode defender o igualitarismo
entre os sexos (comunismo) e nem a mulher reduzida à esfera doméstica
(fascismo), deixando implícito sua defesa da democracia capitalista liberal
(cf. Mead, 1988).
[4] “O caráter revolucionário (...) não é necessariamente
aquele que se manifesta apenas na política. Ele existe, na verdade, na
política, mas também na religião, arte e filosofia. Buda, Os Profetas, Jesus,
Giordano Bruno, Meister Eckhart, Galileu, Marx e Engels, Einstein, Schweitzer,
Russel são caracteres revolucionários. Encontramos esse caráter também no homem
que não está em nenhum desses setores, num homem cujo ‘sim’ é ‘sim’ e cujo
‘não’ é ‘não’, que é capaz de ver a realidade, tal como o menino na história de
Andersen A Roupa do Imperador. Viu
que o imperador estava nu, e o que disse correspondia ao que via” (Fromm, 1986,
p. 126). Como se vê neste e em outros trechos de Fromm, ele está muito distante
da tese de que os revolucionários sejam neuróticos.
[5] “O conceito do que é normal varia não só com a
cultura, mas, também, dentro da mesma cultura, com o passar do tempo. (...). O
conceito de normalidade muda, igualmente, nas diferentes classes da sociedade.
Os membros da classe feudal acham normal que um homem permaneça indolente todo
o tempo, mostrando-se ativo apenas na caça ou na guerra, ao passo que uma
pessoa da pequena burguesia que revelasse a mesma atitude seria olhada como
anormal. Essa variação também ocorre segundo as diferenças de sexo, quando elas
existem na sociedade, como é o caso da cultura ocidental em que se imagina que
homens e mulheres tenham temperamentos distintos. É normal para uma mulher ficar obcecada com receio de envelhecer ao
aproximar-se dos quarenta, enquanto um homem que se afobe por causa da idade
nesse período da vida será considerado neurótico” (Horney, 1984, p. 13).
[6] Isto é mais visível em seu texto sobre a categoria de
negação na dialética, onde ele defende a idéia de que a negação do capitalismo
não poderá ocorrer a partir do interior da totalidade da sociedade capitalista:
“na medida em que a sociedade antagônica se transforma em uma totalidade
repressiva terrível, por assim dizer se desloca o lugar social da negação. O
poder do negativo surge fora dessa totalidade repressiva, a partir de forças e
movimentos que ainda não estão manietados pela produtividade agressiva e
repressiva da chamada ‘sociedade de abundância’, ou que já se libertaram desse
desenvolvimento e, portanto, têm a possibilidade histórica de percorrer um
caminho de industrialização e modernização realmente distinto, um caminho
humano para o progresso. E a essa oportunidade corresponde a força da negação
no interior da ‘sociedade de abundância’, força essa que se revela contra esse
sistema como um todo. A força da negação, como sabemos, não está hoje
concentrada em classe alguma” (Marcuse, 1981, p. 165).
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios
Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008
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