sábado, 13 de abril de 2019

O Ser Humano da Sociedade Capitalista na concepção de Erich Fromm



O Ser Humano da Sociedade Capitalista
na concepção de Erich Fromm

Edmilson Marques*

Resumo

A proposta deste texto é buscar na psicanálise pensada e desenvolvida por Erich Fromm elementos para se pensar o ser humano da sociedade capitalista. Erich Fromm, dentre a maioria dos psicanalistas existentes, desde Freud, procurou desenvolver suas pesquisas e reflexões a partir da “psicanálise humanista”, oferecendo, assim, recursos heurísticos fundamentais para se pensar a vida na sociedade. Nesse sentido, propomos analisar primeiramente o seu método de análise, a partir do qual acreditamos ser fundamental para compreender o procedimento teórico/metodológico que utilizava para pensar os temas por ele abordados, e, nesse sentido, encontrar o caminho a ser percorrido na busca em seu pensamento da seguinte questão: como abordar a partir de seu ponto de vista, o ser humano da sociedade capitalista? Enfim, propomos uma avaliação da própria teoria de Fromm, apontando suas principais contribuições.
Palavras Chaves: Erich Fromm, Ser humano, Capitalismo.


A proposta com este texto é buscar na psicanálise pensada e desenvolvida por Erich Fromm elementos para se pensar o ser humano[1] da sociedade capitalista. Erich Fromm, dentre a maioria dos psicanalistas existentes, desde Freud, procurou desenvolver suas pesquisas e reflexões a partir da “psicanálise humanista”. Seu objetivo era oferecer uma ferramenta para compreender o ser humano a partir da sua relação com sociedade onde vive. Nesse sentido, percebemos neste pensador uma contribuição fundamental para os indivíduos pensarem a própria vida e a vida social que onde está inserido. Diferentemente da psicanálise instrumentalista que concebe esta como uma ferramenta a ser utilizada apenas por aqueles que são habilitados para tal, ou seja, apenas por especialistas. É nesse sentido que Fromm tem se tornado num dos principais estudiosos da psicanálise e referência para vários pensadores.
Iniciaremos, portanto, pela compreensão do seu método de análise, a partir do qual acreditamos compreender a referência fundamental que Fromm utilizava para pensar os temas por ele abordados, e, nesse sentido, encontrar o caminho a ser percorrido na busca em seu pensamento da seguinte questão: como abordar a partir de seu ponto de vista, o ser humano da sociedade capitalista?
Erich Fromm percebeu que Freud ofereceu uma grande contribuição para a humanidade ao criar a psicanálise e tomou seus estudos como uma das referências fundamentais para se pensar o ser humano. A principal descoberta de Freud, segundo Fromm, foi perceber “a irracionalidade do homem e do caráter inconsciente das forças irracionais no seu interior” (Fromm, 1992, p. 32). Fromm (1965, p. 121) ressalta que
A grande descoberta de Freud, a de uma nova dimensão da realidade humana, o inconsciente, é um elemento de um movimento orientado para a reforma do homem. Mas essa mesma descoberta atolou-se no caminho de maneira fatal. Foi aplicada a um pequeno setor da realidade, aos impulsos libidinosos do homem e seu recalque, mas pouco ou nada à realidade mais ampla da existência humana e aos fenômenos sociais e políticos.
            Fromm não tomava as reflexões de Freud de forma dogmática e apaixonada. Percebeu que Freud ofereceu uma contribuição fundamental para a compreensão do ser humano com a descoberta do inconsciente, porém, não se limitou a apenas reproduzir o que foi sistematizado por ele, percebendo além da contribuição, os limites de sua teoria. Fromm observou que os principais pontos de sua teoria estão associados “ao período histórico no qual ele trabalhou”[2]. E seus “defeitos, evidenciam a marca da personalidade de seu fundador” (Fromm, 1965, p. 07). A meta de Freud era fundar um movimento pela libertação ética do homem, uma nova religião secular e científica para uma elite que deveria orientar a humanidade (Fromm, 1965, p. 116), mas, não conseguiu oferecer uma análise que possibilitava ao próprio ser humano, se “libertar das forças irracionais e inconscientes de seu interior” (Fromm, 1992, p. 33).
            Fromm (1992) coloca que um dos principais limites da psicanálise desenvolvida por Freud advém da influência de seus professores (Helmholtz, Dubois e Brücke), os quais defendiam a aplicação do método do materialismo mecanicista. E depois de Freud a maior parte dos psicanalistas “têm-se aplicado as teorias freudianas a material clínico, sempre com a tendência para provar que Freud estava certo, e pouco se incomodando com outras possibilidades teóricas” (Fromm, 1965, p. 118), conseqüência da idolatria realizada pela maioria dos psicanalistas à teoria freudiana dificultando assim, que estes fossem possibilitados de realizar a crítica da teoria de Freud e assim contribuir com avanço e desenvolvimento das reflexões já esboçadas e sistematizadas por ele.
            Foi nesse sentido que Fromm propôs uma “revisão dialética da psicanálise” retomando os pontos principais da teoria de Freud. Procurou “preservar as descobertas de Freud, substituindo, porém, sua filosofia mecanicista-materialista por uma humanista” (Fromm, 1992, p. 11). Nesse sentido, “a renovação criativa da psicanálise só é possível se superar seu conformismo positivista e tornar-se de novo uma teoria crítica e desafiante dentro do espírito do humanismo radical” (Fromm, 1992, p. 38). É a partir do desenvolvimento desta sua proposta de rever a psicanálise tal como estava sendo moldada nos pressupostos da metodologia mecanicistas que Fromm oferece uma ampla contribuição para a compreensão do ser humano que está fadado a viver no capitalismo.
A revisão dialética segue duas abordagens. Uma, que reexamina os dados de Freud e as conclusões teóricas à luz de dados adicionais; examina uma nova estrutura filosófica e mudanças sociais que ocorreram nas últimas décadas (Fromm, 1992, p. 40).

            Para este estudo focalizaremos esta segunda abordagem na qual está o fundamento de sua pesquisa, e por ser esta o objetivo a ser alcançado com o desenvolvimento da primeira (a revisão dos dados de Freud e de suas conclusões teóricas). É a partir desta discussão que elabora a sua concepção de “inconsciente social”. Para Fromm o inconsciente social são
As áreas de repressão comuns à maioria dos membros de uma sociedade; os elementos habitualmente reprimidos são aqueles de cujo conteúdo a sociedade não deve permitir que seus membros tenha consciência, para que possa, com suas contradições específicas, funcionar com êxito” (Apud, Viana, 2002, p. 33).

            Para Fromm, “antes de mais nada, o homem é um ser social”. Seu pressuposto básico e que lhe serviu de referência para seus estudos é que “o homem não é uma máquina regulada por um mecanismo de “tensão-dimensão” deflagrado quimicamente, mas é uma totalidade e tem a necessidade de relacionar-se com o mundo” (1992, p. 11). A partir do ponto de vista de Fromm, e destes pressupostos básicos elencados anteriormente, conclui-se que o ser humano da sociedade capitalista é uma expressão da própria sociedade capitalista. Portanto, é na essência desta sociedade e no modo como esta está determinada a existir que, na concepção de Fromm, se encontra a resposta para se pensar o ser humano desta sociedade. Assim, a complexidade do capitalismo, será expressa no ser humano. A sua compreensão, portanto, deve “basear-se na análise das necessidades do homem resultantes das condições de sua existência” (Fromm, 1984, p. 34).
Para a compreensão do ser humano, no entanto, Erich Fromm propõe o estudo do caráter social[3]. O caráter social é o “núcleo da estrutura do caráter compartilhada pela maioria do dos indivíduos da mesma cultura, diversamente do caráter individual, que é diferente em cada um dos indivíduos pertencentes à mesma cultura” (Fromm, 1984, p. 79). Segundo Fromm o caráter social tem uma função que “consiste em moldar e canalizar a energia humana em uma determinada sociedade, para que esta possa continuar funcionando, continuamente” (1984, p. 80). E tratando-se do ser humano da sociedade capitalista, a sua compreensão deve partir da análise “dos elementos específicos do modo capitalista de produção” (Fromm, 1984, p. 83).
            Nesse sentido o ser humano do capitalismo passa a ser uma expressão das relações de produção e distribuição de mercadorias. Com o processo de mercantilização e burocratização das relações sociais os indivíduos vão sendo educados e moldados pela ação do capital e do Estado; a existir consequentemente de forma mercadológica e burocrática, formando assim, o caráter do ser humano desta sociedade. Nesse sentido, Fromm (1964, p. 88) expressa que “nosso caráter é engrenado para trocar e receber, para transacionar e consumir: tudo, os objetos espirituais como os materiais, torna-se objeto de troca e de consumo”.
Por um lado então, o ser humano da sociedade capitalista será uma expressão dos interesses da classe a qual se pertence[4]. Partindo do pressuposto que os interesses dominantes numa determinada sociedade de classe é os interesses da classe dominante, verifica-se que na sociedade capitalista os interesses predominantes são os interesses da burguesia. Nesse sentido, o ser humano do capitalismo será constrangido a existir de acordo com estes interesses. E uma das características fundamentais destes interesses é a alienação[5]. Fromm toma a alienação como ponto central para analisar o caráter social do ser humano no capitalismo. Segundo ele, “uma das razões dessa sua escolha está no fato de esse conceito parecer a ele tocar o nível mais profundo da personalidade” (1984, p. 106). Para compreender o ser alienado Fromm parte da análise de uma das características fundamentais do capitalismo: o processo de quantificação e abstratificação[6].
            O processo de quantificação e abstratificação para Fromm perpassa o que Nildo Viana (2003; 2009) denominou de mercantilização e burocratização das relações sociais; nesse processo o ser humano passa a ser equiparado e transformado, ao mesmo tempo, numa mercadoria. As relações sociais passam a ser determinadas pela transformação do concreto em abstrato, mais especificamente pela coisificação do trabalho, da sua conversão em dinheiro (que representa a qualidade abstrata do trabalho concreto). Transforma o homem em uma coisa semelhante ao dinheiro, perdendo assim as suas qualidades humanas. E nesse sentido “cada homem pode ser representado por uma entidade abstrata, por cifras, e sobre essa base se calculam os incidentes econômicos, se prevêem as tendências e se tomam as decisões” (Fromm, 1984, p. 107). Esse processo vai ocorrer no capitalismo e formar o caráter social do ser humano do capitalismo.
A produção de mercadorias, por sua vez, se dá através de uma relação de exploração, onde o lucro é o desejo fundamental do capitalista, cujo caráter é a expressão do “desejo de adquirir propriedade; mantê-la, aumentá-la, isto é, obter lucro (Fromm, 1987, p. 82). Esse caráter tem sua expressão no que Fromm denomina “orientação mercantil”.
A concepção mercantilista do valor, o destaque dado ao valor de troca antes que ao valor de uso, levou a uma concepção semelhante de valor aplicável às pessoas e particularmente à própria pessoa de cada um. À orientação do caráter que tem suas raízes na impressão de que se é também uma “mercadoria” e do valor pessoal de cada um com um valor de troca, cognominei orientação mercantil (Fromm, 1960, p. 61).

            A orientação acumulativa é outra questão que vai determinar o ser humano da sociedade capitalista na concepção de Fromm. Essa orientação faz as pessoas terem pouca fé em qualquer coisa nova que possam conseguir do mundo exterior; sua segurança baseia-se na acumulação e na poupança, sendo que gastar é visto como uma ameaça (Fromm, 1960, p. 58). A orientação acumulativa acaba criando um ser humano que
Em suas relações com outros, a intimidade é uma ameaça: o alheamento ou a posse de uma pessoa significam segurança. O acumulativo mostra-se inclinado à desconfiança e tem um senso particular de justiça que virtualmente afirma: “O que é meu é meu e o que é seu lhe pertence” (Idem, p. 60).

            Orientado por esta forma de vida e de se relacionar com o outro, o indivíduo se aliena à mercadoria, e ao mesmo tempo é transformado em uma coisa, sendo educado a absorver os valores burgueses, e instigado a viver nesta sociedade dominada por pessoas cujo caráter é denominado pelo que Fromm denomina aspectos negativos, ou seja, “pessoas com falta de imaginação, mesquinhez, desconfiança, frieza, ansiedade, obstinação, indolência, pedantismo, obsessão e desejo de posse” (1984, p. 90-91).
Nesse sentido, os desejos das pessoas passam a ser referenciados por este caráter burguês. Fromm vai colocar que a existência do homem moderno perpassa pelo ter em detrimento do ser.
As pessoas são transformadas em coisas; suas relações umas com as outras assumem o caráter de propriedade [...] Mas a questão essencial não é tanto o que seja o conteúdo do eu, senão que o eu seja sentido como uma coisa que cada um possui, e que essa “coisa” seja a base de nosso sentido de identidade (Fromm, 1987, p. 82).
           
            Assim, na sociedade capitalista o ser humano “deixa de ser um homem, um ser humano vivente, deixa de ser um fim em si e torna-se um meio para os interesses econômicos de outro homem, ou de si mesmo” (Fromm, 1984, p. 92), torna-se uma “coisa”, um ser alienado, que segundo Fromm (1984, p. 115), é um ser humano que
Se sente como um estranho. Poder-se-ia dizer que a pessoa se alienou de si mesma. Não sente como centro de seu mundo, como criadora de seus próprios atos, tendo sido os seus atos e as conseqüências destes transformados em seus senhores, aos quais obedece e aos quais quiçá até adore. A pessoa alienada não tem contato consigo mesma, e também não o tem com nenhuma outra pessoa. Percebe a si e aos demais como são percebidas as coisas: com os sentidos e com o senso comum, mas, ao mesmo tempo, sem relacionar-se produtivamente consigo mesma e com o mundo exterior.

            No capitalismo o ser humano é determinado a viver de acordo com os interesses da classe dominante, reduzido a uma “coisa”, numa composição do capital, onde os cifrões passam a ser o determinante do seu pensamento e das suas ações. Neste mundo o ser humano que se entrega de corpo e alma à sua paixão pelo dinheiro passa a ser dominada pelo impulso ao dinheiro. O ser humano no capitalismo segue os valores burgueses da idolatria ao dinheiro e a tudo que deriva daí; é nesse sentido que Fromm relaciona a necessidade e existência dos ídolos na sociedade; “é um estranho de si mesmo, assim como lhe são estranhos seus semelhantes” (1984, p. 118). A perda do sentido humano vai ser generalizado e ser substituído pela coisificação do mundo.
Surge daí um mundo doentio, consequentemente, pessoas doentias. O ser humano deixa de ser o centro de si mesmo, e é levado a adorar o mundo das coisas. Esse sentimento determinado pelos valores axiológicos[7] vai se generalizar e ser dominante na sociedade, configurando assim o ser humano do capitalismo, onde o medo, problemas psíquicos, enfim, um mal estar constante será uma característica fundamental e constante em sua vida. Isso provoca a dominação da morte sobre a vida, como pode ser visto no crescente índice de suicídio e na generalização das guerras, da exploração e opressão social.
Bom, até aqui podemos perceber em Fromm a sua ampla contribuição para se pensar o ser humano como expressão dos valores axiológicos. Um ser humano moldado a existir à imagem e semelhança da criadora do capitalismo, a burguesia. Porém, para Fromm (1986, p. 138) “o homem[8] é definido em termos de seu lugar na sociedade”. Para ele “as mais belas, assim como as mais feias inclinações do homem, não são parte de uma natureza humana fixa e recebida biologicamente, mas provêm do processo social que forma o homem” (Fromm, 1983, p. 20). Em si tratando do ser humano da sociedade capitalista, antes de qualquer coisa, é integrante de uma determinada classe social. Nesse sentido, a patologia que domina o mundo é conseqüente do interesse desenfreado da classe dominante na busca pelo lucro, e a sociedade é constrangida a agir conforme esse interesse.
Contudo, a generalização do descontentamento social, proveniente deste mal estar ontológico do capitalismo, vai levar determinadas pessoas a questionarem esse modo de vida. As pessoas não são, como acreditam alguns ideólogos, uma folha em branco em que se determina o seu conteúdo. Nesse sentido, o ser humano do capitalismo, a partir da concepção de Fromm, de um lado vai ser aquele que conforma com a vida tal qual está posta a existir - conseqüência da sua posição de classe, que lhe possibilita o atendimento de suas necessidades básicas, a exemplo dos indivíduos que compõe a classe dominante - e, de outro será aquele que resiste ao próprio capitalismo, e busca por sua superação, a exemplo das classes oprimidas, em conseqüência do conflito proveniente do não atendimento às suas necessidades básicas.
O ser humano, mesmo dominado por forças exteriores que lhe orienta para uma forma de vida, é capaz de questioná-la, e transformá-la para uma orientação diferente desta que vem sendo estabelecida no capitalismo, que coloca em xeque o próprio ser humano em detrimento de sua coisificação. Esse processo Fromm denomina resistência, ou seja, o de tornar conscientes as necessidades reprimidas no inconsciente, e assim, buscar supera-las na prática. Mas, “o homem não é uma coisa; é um ser vivo envolvido num processo contínuo de desenvolvimento. Em casa ponto de sua vida, ele ainda não é o que pode ser e o que ainda pode vir a ser” (Fromm, 1986, p. 138). Voltemos agora àquela questão que colocamos no início deste texto, referente à principal descoberta de Freud destacada por Fromm do inconsciente. O inconsciente é o meio para alcançar o reconhecimento do ser humano, fundamentalmente, um ser humano que se encontra adormecido, porém, vivo, na sociedade capitalista.
Segundo Fromm (1992, p. 84) “o conhecimento do inconsciente torna-se um elemento essencial na busca-da-verdade”, e concebe a verdade como “o processo de remover ilusões, um passo na direção do desengano” (Idem). A questão é que numa sociedade dividida em classes sociais a consciência do indivíduo é uma expressão dos valores e interesses da classe que domina, valores axiológicos, inautênticos. O inconsciente, por sua vez é a expressão de necessidades inatas do ser humano, necessidades autênticas, básicas, que permite a sobrevivência do ser humano, que Fromm (1986) denomina requisitos para a sobrevivência, os quais numa sociedade de classe são reprimidos. Nesse sentido, o ser humano da sociedade capitalista na concepção de Fromm vive este conflito de viver em constante constrangimento de agir conforme os valores burgueses, e ao mesmo tempo, de querer expressar e viver na prática as suas necessidades básicas, autênticas. Assim, o querer viver na prática suas necessidades básicas, autênticas, torna-se para ele o seu objetivo final “de tornar-se plenamente humano e de ficar em união completa com o mundo” (Fromm, 1965b, p. 134), realizando finalmente o seu bem-estar.
Em Fromm compreende-se que o ser humano do capitalismo tenderá responder à posição que ocupa na sociedade, agindo contra a sua desumanização na busca por uma humanização do mundo, marchando em direção à superação das condições sociais que lhe oprime. Fromm (1977, p. 77) coloca que em toda a sua história o homem sempre reagiu
Com protesto contra condições que tornam demasiado drástico ou insuportável o desequilíbrio entre a ordem social e suas necessidades humanas. A tentativa para reduzir esse desequilíbrio e a necessidade de estabelecer uma solução mais aceitável e conveniente estão no cerne do dinamismo da evolução do homem na história. O protesto do homem surgiu não apenas devido ao sofrimento material; necessidade especificamente humana, são motivações igualmente forte para a revolução e para a dinâmica da mudança.

            Guiado e motivado pela superação de sua coisificação, de seu sofrimento, e das ilusões impregnada em sua consciência que se pode ver em Fromm o ser humano do capitalismo. E a condição para a superação destas ilusões que dominam sua consciência só é possível eliminando o mal que lhe causa. Portanto, sendo o ser humano um ser social, como afirma Fromm, é eliminando a sociedade que cria as ilusões (a sociedade de classe[9]) que se tem a possibilidade de se libertar dos grilhões que lhe aprisiona. Como coloca Fromm (1971, p. 74), recorrendo a Marx, “a exigência de renunciar a ilusões sobre a condição pessoal[10] de cada um é a exigência de renúncia às condições que necessitam de ilusões”.
            A questão da eliminação desta sociedade não se trata da eliminação da vida na Terra, embora isso possa ser pensado quando a referência é o interesse da burguesia, ou seja, defender e reproduzir os seus interesses levando esta idéia ao limite de colocar em risco a própria vida do ser humano. Diante desta sociedade criada pela burguesia “a destruição da humanidade como um todo é uma possibilidade concreta, porque dispomos hoje de meios de autodestruição maciça [...]” (Fromm, 1986, p. 142). Mas do ponto de vista da psicanálise humanista de Fromm, “o que importa hoje é preservar o mundo, mas para isso são necessárias certas modificações, e para essas modificações as tendências históricas terão de ser compreendidas e antecipadas” (Fromm, 1969, p. 222).
            Enfim, Erich Fromm oferece uma contribuição fundamental, a partir da psicanálise, para se pensar o ser humano da sociedade capitalista. A partir da base de seu pensamento teórico, do homem enquanto totalidade que sente necessidade de relacionar-se com o mundo, e acrescentamos, de ser construtor e transformador do mesmo, conclui-se que para ele “o homem define a sua humanidade em termos da sociedade com a qual se identifica” (Fromm, 1977, p. 72). Mesmo recorrendo à teoria da transformação de Marx, Fromm não avança no reconhecimento das classes sociais. Nesse sentido, o desenvolvimento da psicanálise desenvolvida por ele se torna uma necessidade, assim como ele fez com a teoria de Freud. Só assim torna-se possível perceber que no capitalismo o ser humano só pode ser pensado como sendo aquele que se identifica com esta sociedade, ou seja, o ser humano como integrantes das classes dominantes, e como aquele que não se identifica com esta sociedade e busca superá-la, os integrantes das classes exploradas e oprimidas, questão ausente na psicanálise de Fromm.





Bibliografia

FROMM, Erich. Análise do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1960.
_____________. A Arte de Amar. Belo Horizonte, Itatiaia, 1964.
_____________. A Crise da Psicanálise. Rio de Janeiro, Zahar, 1971.
_____________. A Descoberta do Inconsciente Social. São Paulo, Manole, 1992.
_____________. A Missão de Freud. Rio de Janeiro, Zahar, 1965.
_____________. A Revolução da Esperança. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
_____________. A Sobrevivência da Humanidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1969.
_____________. Caráter Social de uma Aldeia: um estudo sociopsicanalítico. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.
_____________. Do Amor à Vida. Rio de Janeiro, Zahar, 1986.
_____________. O Coração do Homem. Rio de Janeiro, Zahar, 1965b.
_____________. O Medo à Liberdade. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1983.
_____________. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. São Paulo, Círculo do Livro, 1984.
_____________. Ter ou Ser?. Rio de Janeiro, LTC, 1987.
VIANA, Nildo. Erich Fromm e a Renovação da Psicanálise. No prelo, Revista Espaço Livre, disponível em http://espacolivre.sementeira.net/, 2010.
____________. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
____________. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Germinal, 2002.
____________. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. Aparecida-SP, Santuário, 2009.
____________. Os Valores na Sociedade Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007.
____________. Universo Psíquico e Reprodução do Capital: ensaios freudo-marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.




* Professor da Universidade Estadual de Goiás e doutorando em história pela Universidade Federal de Goiás.
[1] Na totalidade das suas obras Erich Fromm utiliza do termo “homem” para se referir ao “ser humano”. No entanto, aqui, optamos pelo termo “ser humano” para evitar as costumeiras confusões provenientes das interpretações ideológicas (a ideologia do gênero, por exemplo) que remetem a superação do preconceito sofrido pelas mulheres à superação das desigualdades entre os sexos (feminino e masculino), questão que pode ser observada com o próprio Fromm em “Ter ou ser?” na sua crítica ao sexismo na linguagem.
[2] Para ter acesso aos sete principais pontos elencados por Fromm da obra de Freud, ver Fromm (1992).
[3] Para uma leitura mais detalhada da teoria do caráter social, ver Fromm, 1972. Para uma crítica ao caráter social de Fromm, ver Viana (2008), o qual propõe o conceito de “mentalidade” expressando ser esse mais adequado do que aquele.
[4] No caso dos indivíduos proveniente das classes exploradas, a maior parte de seus interesses autênticos serão reprimidos e serão predominantes no seu inconsciente.
[5] Fromm usa o conceito de alienação no sentido de idolatria, veja, por exemplo, a análise sobre o ídolo que realiza em “Psicanálise da Sociedade Contemporânea”, diferentemente da abordagem marxista que concebe a alienação como uma relação social.
[6] Anteriormente Fromm havia abordado esta questão como burocratização e mercantilização.
[7] Para uma leitura mais aprofundada sobre a questão dos valores na sociedade moderna, mais especificamente os valores axiológicos e valores axionômicos, ver Viana, 2007.
[8] Uma questão que perpassa a concepção de Erich Fromm, é a sua constante utilização do termo “homem” num sentido generalizado. Embora, em várias obras deixe claro que pensa o homem como determinado a existir de acordo com a posição que ocupa na sociedade, não aprofunda esta questão e se limita à analisar o ser humano num sentido generalizado, homogêneo, não percebendo o ser humano como um ser integrante de determinadas classes sociais, o que lhe rendeu a crítica de Marcuse (1988) e a crítica de Nildo Viana (2010) que lhe caracterizou como “humanista abstrato” por partir “de uma concepção correta de natureza humana, mas que não chega a perceber a questão fundamental das classes sociais e das lutas de classes e por isso sua ética humanista também se revela limitada, tal como sua proposta de mudança social”.
[9]
[10] Embora assuma uma postura crítica ao capitalismo, Fromm muitas vezes reserva “ao indivíduo o processo de transformação pessoal sem a devida mudança social” (Viana, 2002, p. 32) o que lhe provocou a crítica de Marcuse (1988), percebida por Viana (2002), para o qual o “estilo de Fromm e sua solução, muitas vezes se aproxima ao do ‘poder do pensamento positivo’”.

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