sábado, 20 de julho de 2019

O medo à liberdade no pensamento humanista de Erich Fromm

O MEDO À LIBERDADE NO PENSAMENTO HUMANISTA DE ERICH FROMM


Alan Ricardo Duarte Pereira*

O presente trabalho tem como objetivo analisar o medo à liberdade conforme foi conceitualizado e teorizado por Erich Fromm (1900-1980). E, de forma sucinta, buscaremos expor as concepções teórico-metodológicas de Fromm. Para isso, visamos analisar uma das principais obras que Erich Fromm expõe minuciosamente a problemática da liberdade, cognominada de O medo à liberdade. Num primeiro momento, buscaremos expor o contexto histórico-político de Fromm, juntamente com a Escola de Frankfurt, depois partiremos para a análise que o autor faz do conceito de liberdade e, por fim, destacaremos as problemáticas e implicações em torno do medo à liberdade na sociedade capitalista.
O psicanalista Erich Fromm tem uma obra vasta sobre psicanálise e marxismo, entre esse obras temos, principalmente, Análise do Homem, Conceito marxista do Homem, O coração do Homem , A crise da Psicanálise, Meu encontro com Marx e Freud, A missão de Freud , Psicanálise da Sociedade Contemporânea , além dessas obras existem duas tratando- se do conceito de liberdade, O Espírito da Liberdade e O medo à liberdade. As duas últimas obras, neste artigo, serão resgatadas- e principalmente a obra O medo à liberdade - para analisarmos o conceito de liberdade em Fromm.

A escola de Frankfurt e a teoria crítica

Primeiramente, para que se entenda as reflexões de Fromm sobre o conceito de liberdade, tornar-se-á necessário buscar suas fundamentações na chamada Escola de Frankfurt. O instituto foi fundado na cidade de Frankfurt, na Alemanha, em 1923, ligado à Universidade de Frankfurt. Os integrantes dessa escola foram Max Horkheimer, Theodor W. Adorno, Herbert Marcuse, Walter Benjamin, Erich Fromm, entre outros. Essa escola buscou preencher algumas lacunas do marxismo tradicional, “extraindo” suas teorias dos mais diversos campos (psicanálise, filosofia, existencialismo, sociologia, história), sintetizando trabalhos como de Hegel, Kant, Lukács e principalmente, de Marx e Freud. Criaram, assim, o

 que foi considerado de “Teoria Crítica da sociedade”. Conforme aponta Matos (1993) em seu livro sobre a Escola de Frankfurt, “a Teoria Crítica realiza uma incorporação do pensamento de filósofos “tradicionais”, colocando-os em tensão com o mundo presente” (MATOS, 1993, p.13).
É importante observar que essa mesma escola não somente refutou as obras de alguns autores, mas, simultaneamente, incorporou uma gama de pensamentos, reformulando, por sua vez, as abordagens tradicionais, assim, pode-se considerar que os
Membros filiados a essa escola objetivaram realizar uma sistemática crítica ao positivismo e à racionalidade iluminista. Sem constituírem um bloco de fundamentação epistemológica homogênea, postulam posições algumas vezes não convergentes mas com um mesmo denominador comum: o questionamento com base filosófica. Por caminhos diversos, manifestaram- se desiludidos, como a grande maioria de intelectuais de sua época, com as transformações do mundo em que viviam, questionando com ceticismo tanto a validade da militância política quanto o desejo de autonomia e independência do pensamento. Ao apontarem para a centralidade dada ao método no positivismo, procuram observar o método para as ciências sociais sob outro ponto de vista. Ideologicamente falando, os integrantes da Escola de Frankfurt constituíam um grupo de intelectuais marxistas heterodoxos (...), no começo do século XX (HELOANI, 2007.p.2).

A análise de Fromm sobre o conceito de liberdade fundamenta-se no contexto vivido pela sociedade da Alemanha, isto é, com a ascensão do regime nazista, os participantes da escola, tentaram entender os regimes totalitários, é o caso de Fromm, ao lançar as bases do medo à liberdade, resultante, em grande parte, das consequências trazidas pelo regime nazista na Alemanha. A Escola de Frankfurt[1], além de abordar diferentes campos do saber, criou a chamada teoria freudomarxista. Foram poucos os frankfurtianos que tentaram fazer uma união entre marxismo e psicanálise, o caso de Fromm, revela-se especial, pois o autor, nas diferentes obras, tenta mesclar as duas concepções. No entanto, a composição entre as duas correntes não se dá, primeiramente, entendendo o marxismo pela psicanálise, ao contrário, entendendo a psicanálise pelo marxismo. Nesse ponto, Fromm, além de utilizar diversos elementos da psicanálise de Freud, também faz sua crítica,
Apesar de se inspirar nesses pensadores, Fromm busca ir além deles e produzir sua própria concepção, através da busca de síntese entre Marx e Freud. Porém, Fromm não poupa críticas principalmente a Freud.(...) Podemos dizer que Fromm endereçou a Freud diversas críticas. Podemos destacar, em primeiro lugar, a crítica metodológica; em segundo lugar, a crítica do biologismo e pansexualismo; em terceiro lugar, a crítica política. Estes três elementos não esgotam as divergências e críticas de Fromm a Freud (...). (VIANA, 2010, p. 42-43).

Tratando de entender a teoria freudomarxista, pode-se, em linhas gerais, considerá-la como fruto proeminente da Escola de Frankfurt, assim, entre suas principais características, define-se que foi uma corrente que,
(...) busca unir marxismo e psicanálise para fornecer uma explicação da sociedade. (...) Há muito tempo esta junção vem sendo almejada no pensamento ocidental, desde a Escola de Frankfurt, quando no final dos anos 1920 foi criada na Alemanha, depois a derrota da tentativa de revolução proletária, gerou uma contrarrevolução. Assim, buscou-se explicar o que alguns pensaram ser uma adesão da classe operária alemã ao nazismo. Neste momento, alguns passaram a defender a importância da psicologia social para a explicação do fenômeno nazista e outros fenômenos sociais. Autores como Adorno, Fromm, Reich, Marcuse, entre outros, produziram trabalhos que buscavam explicar o mecanismo psíquico do indivíduo na sociedade capitalista (VIANA, 2008, p. 13).

A partir do pensamento elaborado pela Escola de Frankfurt, o autor em estudo, Fromm, desenvolve sua teoria, tanto do medo à liberdade, como uma das principais inovações de sua obra, o conceito de inconsciente social, diferenciando, da proposta elaborada por Freud sobre o inconsciente.

O medo à liberdade segundo o pensamento humanista de Erich Fromm

 Fromm, por ser psicanalista, não deixa de abordar a problemática do medo à liberdade em termos eminentemente psicológicos, ao mesmo tempo, tenta partir para análise material-histórica. Pode-se ter um grado-geral, no qual podemos, explicitamente, observar as influências de Fromm,
Erich Fromm iniciou sua carreira de psicanalista na Alemanha. Ele foi um dos fundadores do Instituto de Pesquisa de Frankfurt, de onde sairia o conjunto de pensadores que foram identificados por pertencerem a "


Escola de Frankfurt" (Marcuse, Benjamim, Adorno, Horkheimer, entre outros), mas foi no período de ascensão do nazismo e sua ida para os Estados Unidos que ele começou a produzir suas grandes obras, entre as quais, O Medo à Liberdade, Análise do Homem, Psicanálise da Sociedade Contemporânea. (...) Fromm busca em Marx e na antropologia moderna elementos de análise que permitiram a construção de uma concepção histórica, social e cultural do ser humano (...). A síntese que Fromm irá realizar entre as ideias de Freud e Marx é bastante interessante. Fromm irá recusar e criticar várias teses de Freud e se desvencilhar de várias deformações da obra de Marx, ou seja, do “marxismo positivista de Lênin, Bukhárin e outros" (VIANA, 2002, p. 31-32).

A teoria sobre o medo à liberdade é, em linhas gerais, uma explicação para os regimes totalitários que surgiram na Europa, principalmente, para o caso do nazismo, o qual Fromm presenciou com toda a Escola de Frankfurt. Para Matos (1993), a questão do totalitarismo será imprescindível para compreender a Teoria Crítica elaborada pela Escola de Frankfurt, notando que “a ascensão do nazismo, a Segunda Guerra Mundial (...) foram os fatores que marcaram a Teoria Crítica da Sociedade (MATOS,1993.p.67).
Estando em solo americano, desde 1934 em Nova York, Fromm publicou seu primeiro livro[2]19 intitulado O medo á liberdade em 1941. Nesse livro, Fromm busca compreender o totalitarismo, como também, o conceito de liberdade. Logo, no prefácio do seu livro, Fromm afirma que
A tese deste livro é que o homem moderno, emancipado dos grilhões da sociedade pré-individualista que simultaneamente lhe davam segurança e o cerceavam, não alcançou a liberdade na acepção positiva de realização do seu eu individual: isto é, a manifestação de suas potencialidades intelectuais, emocionais e sensoriais (FROMM, 1974, p.10).
Além disso, como o conceito de individualização estaria circunstanciado a problemática de medo à liberdade? Como para alguns a liberdade será um objetivo cobiçado e para outros uma ameaça, um peso enorme? É nesse sentido que Fromm tenta explicar um dos principais problemas do mundo capitalista: o medo à liberdade. Para Fromm o conceito de liberdade é histórico-material e não estático, portando, é mister considerar que “a liberdade caracteriza a existência humana como tal e, outrossim, que seu significado muda

 de acordo com o grau com que o homem se percebe e concebe a si mesmo como um ser
independente e separado” (FROMM, 1974, p.29).
Desse modo, Fromm apresenta o que ele denominou de individuação, processo esse que, historicamente, estaria concatenado ao conceito de liberdade. A individuação, como o conceito de liberdade, mudaria com o passar das décadas, atingido, segundo Fromm, seu ápice na história moderna com a instauração da sociedade capitalista. Para exemplificar seu pensamento, Fromm relaciona seu conceito de liberdade e individuação ao processo de nascimento e crescimento da criança. Observa-se que a criança, ao nascer, permanece unida à mãe, mesmo depois da separação biológica.
Ela encontra-se protegida por elementos externos como o cuidado da mãe, sendo alimentada, carregada e sendo cuidada, isso dará à criança segurança e orientação. Esse aspecto que a criança encontra ao nascer, Fromm chama-os de vínculos primários. Para Fromm, “eles são orgânicos no sentido de fazerem parte do desenvolvimento humano normal; implicam uma ausência de individualidade, mas também dão segurança e orientação ao indivíduo” (FROMM, 1974, p.30). O processo de individuação é acelerado pela educação, pelo egocentrismo que é típico das crianças e também pela submissão exacerbada aos pais. Outros fatores que poderão ajudar a romper os vínculos primários e desenvolver por completa a individuação é, primeiramente, o fortalecimento físico, emocional da criança. O outro aspecto é a crescente solidão. À medida que a criança vai quebrando os vínculos primários, ela fica separada dos vínculos que, outrora, acobertava-a, portanto, começa a ficar sozinha. Assim, no momento que criança percebe-se só no mundo, ela, enxerga-se capaz de fazer as coisas por si próprias, sem a interferência de outrem. No entanto, ela deve, a partir de então, enfrentar o mundo sozinho, com seus aspectos perigosos. Para Fromm, é nesse período, que “surgem impulsos para se renunciar à própria individualidade, para superar o sentimento de isolamento e de impotência (...)” (FROMM, 1974, p. 33) Nesse sentido, a liberdade tem um significado diverso daquele que possuía antes.
Como podemos perceber, ao analisar o processo de individuação e, igualmente, o desvencilhamento dos vínculos primários, a criança passa por um longo período até atingir
o estágio supremo de individuação. Para chegar a esse ponto, foi necessário a criança emancipar-se dos grilhões que a controlava, para que assim, pudesse de maneira autônoma, tornar-se,  por  fim,  livre.   Não  obstante,  Fromm  tentará,  em  sua  obra, relacionar


filogeneticamente o processo de individuação à história do homem, apontando para isso, dois períodos da história humana: a idade média com as relações, tipicamente, feudais e, também, a idade moderna com a ascensão do regime capitalista.
Nesse ínterim, Fromm faz uma dicotomização do conceito de liberdade, segundo suas palavras, “(...) a liberdade é aqui empregada não em seu sentido positivo de “liberdade para, porém no negativo de “liberdade de”, ou seja, liberdade da determinação instintiva de suas ações (...) “Liberdade de” não é a mesma coisa que liberdade positiva, “liberdade para” (FROMM, 1974, p. 35-37).
Resta desse modo, identificar quais das liberdades são existentes em nossa sociedade capitalista. Ao comentar as implicações do conceito de liberdade em Fromm, afirma Santos,
(... ) a diferença entre a “liberdade de” e a “liberdade para”, sendo a primeira a liberdade existente também na sociedade capitalista que segundo o autor uma pseudoliberdade, e a segunda seria a realização da liberdade no sentido do homem se livrar das ideologias que o aprisionaram ao longo da história, bem como na sociedade capitalista (SANTOS, 2010, p.19).

Na história, segundo Fromm, o indivíduo surge durante os movimentos modernos, como o Renascimento e, principalmente, com o capitalismo. Assim, no período moderno, uma nova concepção de liberdade foi criada, encontrando solo fértil em novas doutrinas religiosas, como a Reforma. Nesse sentido, como era a liberdade na sociedade medieval, ou, se existia a noção de indivíduo? Para Fromm, o que diferencia a sociedade medieval da moderna, baseia-se em que, no período do medievo, não existia liberdade. Corroborando sua argumentação, Fromm, tenta mostrar como a Idade Média as pessoas, em sua maioria, não tinham possibilidade de mudar de uma classe para outra, não se podia sequer mudar geograficamente de um país para outro. Além disso, a vida em vários aspectos, como econômico e social era controlada por regras e coerções advindas, ora da Igreja, ora do poder monárquico. Ainda, segundo Santos
A sociedade medieval existia um sistema de pensamento fechado, articulado no qual o indivíduo estava integrado com o meio que lhe proporcionava uma relativa estabilidade, diferente da sociedade capitalista quando aparece o “indivíduo” emancipado, pois alterou-se a estrutura das classes, iniciando o que Marx denominou a luta entre o proletariado e a burguesia (Marx 1998) (SANTOS, 2010, p. 19).


A partir dessas constatações, observamos que, durante o período medieval, não existia o indivíduo, conforme a acepção moderna do termo. Fromm, nesse ponto assinala que “o homem estava ainda relacionado com o mundo pelos vínculos primários. Ele ainda não se concebia como indivíduo, salvo através de seu papel social (que era então, igualmente, seu papel natural” (Fromm, 1974, p.43). Portando, o ser humano no medievo é, dessa forma, comparado à criança logo ao nascer, precisando, desde cedo, de cuidados, em outras palavras, a sociedade medieval representa a não-individualização do ser humano, consequentemente, a não-liberdade. Em contraposição a isso, o início da modernidade pode, contudo, desenvolver a noção de indivíduo. Os grilhões que outrora cercavam o ser humano foram quebrados, agora, mais do que nunca, poder-se-ia desenvolver sua liberdade. No entanto, é nesse momento que o ser humano tem tudo, mas, ao mesmo tempo, surge o medo à liberdade.
Do mesmo modo que a criança, ao atingir o ápice da individualização, o ser humano fica sozinho no mundo, tendo que enfrentar de todos os lados perigos eminentes. Segundo Fromm
(...) a nova liberdade trouxe consigo duas coisas para eles: um maior sentimento de força e, ao mesmo tempo, maior isolamento, dúvida, ceticismo e - oriunda de tudo isso - mais angústia. É a mesma contradição que encontramos nas obras filosóficas dos humanistas. Lado a lado com seu realce revelam insegurança e desespero em sua filosofia (FROMM, 1974, p. 48).

Fromm também aponta que,
(...) o capitalismo libertou o indivíduo. Ele libertou o homem da arregimentação do sistema corporativo; permitiu-lhe firmar-se nos próprios pés e experimentar sua sorte (...) O indivíduo está livre da opressão dos grilhões econômicos e políticos (...) Mas simultaneamente está livre daqueles vínculos que costumavam dar-lhe segurança e uma sensação de relacionamento (FROMM, 1974, p. 58).

Ao deparar com isso, o indivíduo moderno foi deixado só, tendo que fazer tudo ao seu próprio esforço, sem ninguém para ajudá-lo. A liberdade, portando, começa a ter um sentido negativo, na qual os seres humanos não conseguem conviver, surge então, o medo à liberdade. O indivíduo pode emancipar-se dos grilhões que, outrora, controlava-o. Mas simultaneamente ele ficou livre, como a criança, dos vínculos (primários) que costumavam dar-lhe segurança e sensação de relacionamento. A liberdade deixa-o isolado tendo que


enfrentar o mundo sozinho. Assim, a liberdade adquire, então, um significado negativo, levando a destruição da personalidade. A liberdade torna-se um fardo demais pesado para o homem suportar, levando-o a ter, o medo à liberdade.
A análise que Fromm faz sobre do medo à liberdade é insatisfatória em certos pontos. Ao produzir sua teoria sobre a liberdade, Fromm, não consegue detectar que para se efetivar a liberdade em seu sentido positivo é necessário, antes de tudo, abolir a sociedade que gera o medo à liberdade, isto é, a sociedade capitalista marcada pela luta de classes. Na concepção de Santos,
O autor devido ao seu humanismo abstrato, tendência que se assemelha a uma solidariedade com as classes exploradas e, não perceber que o fundamental é lutar pela transformação social e que a superação dos males dessa sociedade passa necessariamente pela superação da sociedade capitalista (SANTOS, 2010, p. 18).

Portanto, a limitação conceitual de Fromm baseia-se em não reconhecer que a sociedade capitalista é quem produz o medo à liberdade, como também, apresenta da mesma forma, as coibições para se efetivar o projeto de liberdade para, segundo o termo cunhado por Fromm. No mesmo sentido, Viana assinala a importância do pensamento de Fromm, que “faz um diagnóstico crítico da sociedade capitalista, embora se perca quando tenta apresentar soluções dentro do capitalismo o qual, segundo ele mesmo, gera uma sociedade alienada. (VIANA, 2008, p.13). Assim, Fromm se perde em não reconhecer que a sociedade capitalista é, paradoxalmente, o principal obstáculo para a realização da liberdade. No pensamento de Marx podemos, em alguns pontos, entender a razão da não- liberdade no sistema capitalista, pois,
Procurando seu próprio espaço entre Hegel e Feuerbach, Marx busca apreender a liberdade a partir da base concreta das relações materiais, entretanto, encalha no modelo fenomenológico da autoconsciência. (...) Valendo-se da crítica a Proudhon, Marx atinge o refinamento metodológico que possibilitar-lhe-á uma abordagem filosoficamente mais consistente do problema da liberdade, através da exploração do potencial crítico de uma forma de exposição fundada em modelo de autoconstituição.(...) N'O Capital, a exposição do sistema capitalista enquanto totalidade concreta — síntese de múltiplas determinações — revela que as condições de possibilidade da confirmação do capital como princípio onímodo de síntese social são o desaparecimento da liberdade substancial do plano do discurso explícito — ao mesmo tempo em que se mantém a aparência de uma liberdade abstrata — e a consequente efetivação da não-liberdade (OLIVEIRA, 1998, p. 188-191).


Para Marx, a realização da liberdade não ocorreu devido o trabalhador ser livre, para vender somente seu trabalho que, em decorrência do capitalismo, torna-se, trabalho alienado. Nas palavras de Marx,
Todas essas consequências decorrem do fato de o trabalhador ser relacionado com produto de seu trabalho como com um objeto alienado. (...) A alienação do trabalhador em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas ainda que existe independente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que se lhe opõe como uma força autônoma (MARX, 1983, p. 91).

Desse modo, considera-se que a liberdade no sistema capitalista é, portando, uma pseudoliberdade,
(...) posta pela sociedade capitalista é uma falsa liberdade, pois é uma liberdade puramente formal e abstrata. O trabalhador aparece como homem livre no mercado de trabalho unicamente porque antes todos os meios objetivos para o processo foram convertidos em propriedade do não trabalhador (...). Mas trabalhador livre para Marx é trabalhador destituído de todos os meios objetivos de realização de sua humanidade como trabalhador (...) (ANTUNES, 2009, p. 91).

Em decorrência de não reconhecer, numa perspectiva marxista, que o indivíduo é livre, mas somente para vender sua força de trabalho, Fromm, cai no malogro de somente apresentar a sociedade capitalista, mas, não vê, nesse mesma sociedade , que a superação do medo à liberdade consiste, portando, em extirpá-la, através da autogestão social[3]. Mesmo assim, pode-se considerar que a obra de Fromm constitui um marco importante para se pensar a liberdade, tendo um conteúdo pertinente e válido.

Referências

ANTUNES, Jadir. Marx e as noções de progresso, liberdade e sujeito na história. [On-line] 2009. Disponibilidade:
.Acesso: abril de 2011.
FROMM, Erich. O medo à Liberdade. Rio de Janeiro: Zahar,1974.
HELOANI, Roberto. A valorização da reflexão: o melhor antídoto contra o dogmatismo. [On- line] 2007. Disponibilidade: http://www.sepq.org.br/IIsipeq/anais/pdf/gt4/05.pdf .Acesso: abril de 2011.



MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico- Filosóficos. In: FROMM, Erich. O Conceito Marxista do Homem. 8a edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
OLIVEIRA, Avelino da Rosa. O problema da liberdade no pensamento de Karl Marx. [On-line] 1998. Florianópolis: Revista Perspectiva. Disponibilidade:
SANTOS, André de Melo. Reflexões sobre as implicações do conceito de liberdade em Erich Fromm. Revista Espaço Acadêmico. Disponível em:
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital: ensaios freudo-marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
                  . Inconsciente coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia: Germial, 2002.
                .    Fromm    crítico    de    Freud.    [On-line]2010.    Revista    Espaço    Acadêmico. Disponibilidade: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewFile/10501/5776                . Acesso: Acesso: abril de 2011.
                . Manifesto Autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008.



* Graduando em História pela Universidade Federal de Goiás.
[1] A Escola de Frankfurt, pode ser dividida em três momentos básicos, segundo Heloani (2007): no primeiro, período de antes e durante a Segunda Guerra Mundial, época da perseguição nazista, Horkheimer exerce a principal influência sobre o andamento dos trabalhos. No segundo, Adorno assume a direção intelectual do Instituto, introduz o tema da cultura e desenvolvimento em sua teoria estética, uma versão especial da teoria crítica. Já no terceiro momento, a liderança passa a Habermas que, pela discussão da crítica, buscará com sua teoria da ação comunicativa uma saída para os impasses criados por Horkheimer e Adorno, por meio da proposta de um novo paradigma: o da razão comunicativa. (HELOANI, 2007.p.3)
[2] Deve-se observar, todavia, que a obra em que Fromm vai defender sua tese sobre o medo a liberdade é uma concepção a priori do conceito de liberdade, especialmente, por que a primeira obra editada e publicada de Fromm é o livro intitulado de O medo à Liberdade , tendo sua primeira edição em 1941. Desse modo, alguns conceitos apresentados na obra, como o de liberdade, não resultam de um amadurecimento teórico e, às vezes, deixam por desejar nas incongruências analíticas.
[3] A autogestão, conforme empregada aqui é o meio para emancipação do ser humano, e,  igualmente,  a liberdade do indivíduo, abolindo, por sua vez, o mercado e o Estado. Portanto, “A autogestão é, assim, uma relação de produção e não como nas ideologias burguesas, mera forma de gestão de empresas, ou simplesmente democracia direta (VIANA, 2008, p. 78).
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Publicado originalmente na Revista Enfrentamento:
http://redelp.net/revistas/index.php/enf/article/view/880/pdf_53 

sexta-feira, 19 de julho de 2019

QUEM É HOMEM?



QUEM É HOMEM? *

Erich Fromm

A pergunta “Quem é homem?” leva-nos diretamente ao âmago do problema. Se o homem fosse uma coisa, então poderíamos perguntar o que ele é e defini-lo do modo que definimos um objeto na natureza ou um produto industrial. Mas o homem não é uma coisa e não pode ser definido do mesmo modo que definimos uma coisa. Apesar disso, entretanto, o homem é frequentemente visto como uma coisa. É descrito como um operário, um gerente de fábrica, um médico, etc. Mas tais descrições nos dizem apenas qual é a função social de um indivíduo. Em outras palavras: o homem é definido em termos de seu lugar na sociedade.

O homem não é uma coisa; é um ser vivo envolvido num processo contínuo de desenvolvimento. Em cada ponto de sua vida, ele ainda não é o que pode ser e o que ainda pode vir a ser.

Embora o homem não possa ser definido do modo que definimos uma mesa ou um relógio, ele não foge inteiramente à definição. Podemos dizer mais sobre ele do que não é uma coisa mas um processo vivo, O mais importante aspecto da definição de homem é que seu pensamento pode ir muito além da satisfação de suas necessidades físicas. Para ele, pensar não é – como para um animal – simplesmente um meio de obtenção de bens desejados; é também um meio de exploração da realidade do seu próprio ser e do mundo à sua volta, independentemente de suas simpatias e antipatias. Em outras palavras: o homem não só tem inteligência, o que os animais também possuem, mas tem ainda razão, a qual ele pode usar para perceber a verdade. Quando o homem se deixa guiar por sua razão, atua de acordo com os seus melhores interesses como ser intelectual e físico.

Mas sabemos por experiência que muitas pessoas, cegas pela cobiça e a vaidade, não atuam racionalmente em suas vidas privadas. Pior ainda, as ações de nações são guiadas ainda menos pela razão, porque os demagogos estão sempre a postos para fazer o cidadão esquecer que levarão sua cidade e seu mundo à ruína se der crédito aos demagogos. Muitas nações caminharam irremediavelmente para a destruição por não terem logrado se libertar das emoções irracionais que estavam determinando seu comportamento e por não terem aprendido o caminho da razão. A tarefa crucial que os profetas do Antigo Testamento realizaram não foi, como pensa muita gente, predizer o futuro. Foi proclamar a verdade e, assim, sugerir indiretamente quais seriam as consequências futuras das ações presentes das pessoas.

Como o homem não é algo que possamos descrever desde fora, por assim dizer, temos que recorrer à nossa própria experiência pessoal como seres humanos para defini-lo. Portanto, a pergunta “Quem é homem?” obriga-nos a indagar, “Quem sou eu?”. Se queremos evitar o erro de tratar o homem como uma coisa, a única resposta que podemos dar à pergunta “Quem sou eu?” é: “um ser humano”.

A maioria das pessoas nunca tomou conhecimento de sua identidade como ser humano. Elas criam toda a espécie de imagens ilusórias de si mesmas, suas qualidades e sua identidade. Responderão frequentemente à nossa pergunta como “Sou professor”, “Sou operário”, “Sou médico”. Mas essa informação sobre o trabalho de uma pessoa nada nos diz sobre essa pessoa e não contém qualquer pista para ajudar-nos a responder à pergunta “Quem é ele?”, “Quem sou eu?”.

Neste ponto, deparamo-nos ainda com uma outra dificuldade. Todos temos uma certa orientação social, moral e psicológica. Quando e como sei se uma direção que alguém tomou será sua direção permanente ou se alguma experiência poderosa será capaz de fazê-la mudar de orientação? As pessoas atingirão um ponto em que estão fixadas tão firmemente em seus rumos que se posa corretamente dizer delas que são quem são e nunca mudarão? Estatisticamente pode ser possível dizer isso de muita gente.

Mas poderemos dizê-lo a respeito de cada pessoa até o dia de sua morte, e poderemos dizê-lo se considerarmos que talvez ela mudasse se tivesse vivido mais tempo?

Podemos definir o homem ainda de uma outra maneira. Ele é guiado por dois tipos de emoções e impulsos. Um tipo é de origem biológica e basicamente o mesmo em todas as pessoas. Inclui tudo o que se enquadra nos requisitos para a sobrevivência: a necessidade de satisfazer a fome e a sede, a necessidade de proteção, a necessidade de alguma forma de estrutura social e, num grau muito menor, a necessidade de realização sexual. As emoções do segundo tipo não têm raízes na biologia e não são idênticas para todas as pessoas. Essas emoções – como amor, alegria, solidariedade, inveja, ódio, ciúme, competitividade, cobiça, etc. – originam-se em diferentes estruturas sociais. No caso do ódio, temos que distinguir entre ódio reativo e endógeno.

Entendemos esses termos como paralelos à depressão reativa e endógena. O ódio reativo é uma resposta a um ataque ou uma ameaça a nós mesmos ou ao nosso grupo, e passa usualmente assim que o perigo passou. O ódio endógeno é um traço de caráter. Uma pessoa cheia dessa espécie de ódio está sempre buscando novos meios de passar ao ato, de concretizar esse ódio.

Ao invés das emoções de base biológica, as emoções socialmente geradas que acabei de mencionar são produtos de estruturas sociais específicas. Numa sociedade onde uma minoria exploradora domina uma maioria indefesa e empobrecida, existe ódio de ambos os lados. É mais do que óbvio que a maioria explorada sentirá ódio. Entretanto, o ódio da minoria dominante será alimentado pelo medo da vingança que os oprimidos posam um dia levar a efeito. Além disso, a minoria tem que odiar as massas a fim de sufocar seus próprios sentimentos de culpa e justificar sua exploração. O ódio não desaparecerá enquanto faltarem justiça e igualdade. Do mesmo modo, a verdade não prevalecerá enquanto as pessoas tiverem que mentir para justificar suas violações dos princípios de igualdade e justiça.

Algumas pessoas afirmam que princípios como igualdade e justiça são ideologias que se desenvolveram no curso da história e não fazem parte do equipamento básico, natural, do homem. Não posso dedicar-me aqui a uma refutação desse argumento, mas quero enfatizar um ponto que fala contra ele: o modo como as pessoas reagem se um grupo hostil viola os princípios de justiça e igualdade demonstra que as pessoas têm, no mais profundo de seu íntimo, um forte sentido desses valores. A sensibilidade da consciência humana em nenhuma parte é mais evidente do que no modo como a maioria das pessoas reage até às mais pequenas violações da justiça e da igualdade, desde que, é claro, não sejam elas próprias as acusadas de cometer tais violações; E assim é que a consciência encontra veemente expressão nas acusações que grupos nacionais fazem contra seus inimigos. Se as pessoas não possuíssem sensibilidade moral natural, como seria possível incitá-las a tão violentas paixões informando-as sobre as atrocidades que se alega terem sido cometidas por seus inimigos?

Ainda uma outra definição de homem diz que ele é um ser em que o governo instintivo do comportamento foi reduzido a um mínimo. O homem reteve, obviamente, certos elementos da motivação instintiva, como em sua necessidade de satisfazer a fome e de se reproduzir. Mas é somente quando a sobrevivência do indivíduo ou da comunidade está em jogo que o homem é primariamente motivado pelo instinto. A maioria dos impulsos que motivam as pessoas – ambição, inveja, ciúme, vingança – surge e é alimentada por constelações sociais específicas. O fato de que esses impulsos podem assumir prioridade, até mesmo sobre o instinto de sobrevivência, demonstra até que ponto eles podem ser poderosos. As pessoas estão frequentemente preparadas para sacrificar a vida a serviço tanto de seus ódios e ambições quanto de seus amores e lealdades.

O mais abominável de todos os impulsos humanos, a necessidade de usar uma outra pessoa para satisfazer os próprios fins, em virtude do próprio poder sobre essa pessoa, pouco mais é do que uma forma refinada de canibalismo. Esse impulso irrefreável para usar outros com vistas aos nossos próprios fins era desconhecido nas sociedades neolíticas. Para quase todos os que vivemos hoje é praticamente impossível imaginar que tivesse havido alguma vez um período histórico em que os homens não queriam explorar nem eram explorados. Mas esse tempo existiu. Nas primitivas culturas de caçadores-coletores e agrícolas, todos tinham o suficiente para viver e seria despropositado acumular bens. A propriedade privada não podia ainda ser investida como capital e usada como fonte de poder.

Essa fase do pensamento humano está refletida de forma simbólica no Antigo Testamento. Os filhos de Israel foram alimentados no deserto com maná. Havia maná em abundância e todos podiam comer quanto quisessem, mas o maná não podia ser armazenado. Tudo o que não fosse comido estragava-se e desaparecia no mesmo dia. Não adiantava especular sobre se viria logo ou não mais maná. Mas bens como cereais ou fermentas não desaparecem. Podem ser acumulados e dar poder àqueles que possuem maior quantidade de tais bens. Somente quando os excedentes começaram a ultrapassar um certo limite é que se tornaram vantajosos para a classe dominante, a fim de exercer o poder sobre outras classes e obrigá-las a executar trabalhos para os seus senhores, aceitando como seu quinhão o estritamente mínimo necessário à existência. O triunfo do Estado patriarcal fez dos escravos, trabalhadores e mulheres as principais vítimas da exploração.

Somente quando o homem deixar de ser um artigo de consumo para o seu “semelhante” mais forte, poderá o nosso período canibalístico, pré-histórico, terminar, e a nossa história verdadeiramente humana começar. Para que se efetue tal mudança, teremos que adquirir plena consciência de até que ponto são criminosos os nossos modos e costumes canibalísticos. Mas até a plena consciência permanecerá ineficaz se não for acompanhada de um remorso igualmente abrangente.

O remorso é mais do que sentirmo-nos meramente arrependidos a respeito de algo. O remorso é uma emoção poderosa. Uma pessoa com remorsos sente verdadeira repulsa por si mesma e pelo que fez. O remorso e a vergonha que o acompanha são as únicas emoções humanas que podem impedir que velhos crimes sejam repetidos continuamente. Onde não há remorso pode surgir a ilusão de que não foram cometidos crimes. Mas onde encontramos qualquer remorso genuíno? Os israelitas sentiram remorso pelo genocídio que perpetraram contra as tribos de Canaã? Os americanos sentem remorso pelo extermínio quase completo dos índios? Durante milênios o homem tem vivido num sistema que alivia o vencedor de remorso porque equipara poder e direito. Cada um de nós deveria confessar plenamente os crimes que nossos antepassados, nossos contemporâneos ou nós mesmos cometemos, diretamente ou através de omissão quando deveríamos protestar. Devemos confessar esses crimes abertamente, publicamente, em forma ritual, por assim dizer. A Igreja católica romana oferece ao indivíduo a oportunidade de confessar seus pecados e deixa que a voz da consciência seja ouvida. Mas a confissão individual não é bastante, porque não envolve os crimes que são cometidos por um grupo, uma classe, uma nação ou, de suma importância, por um Estado soberano, o qual não está sujeito aos ditames da consciência individual. Enquanto formos relutantes em fazer “confissões de culpa nacional”, continuaremos adotando os nossos velhos hábitos, mantendo os olhos abertos para os crimes dos nossos inimigos, mas permanecendo cegos para os crimes do nosso próprio povo.

Como podem os indivíduos começar a obedecer aos ditames da consciência de um modo sério quando nações, que professam ser guardiãs da moralidade, agem sem consideração alguma pela consciência? O que inevitavelmente se segue é que a voz da consciência é silenciada em cada ocasião, pois a consciência é não menos divisível do que a verdade. Se a razão humana pretende tornar-se um guia efetivo para as nossas ações, ela não pode ser dominada por emoções irracionais. A inteligência continua sendo inteligência, mesmo quando devotada a fins perversos. A razão, porém, a nossa percepção consciente da realidade tal como é e não como gostaríamos de vê-la a fim de podermos explorá-la para os nossos próprios fins – a razão, nesse sentido, só pode ser eficaz na medida em que pusermos de lado as nossas emoções irracionais, isto é, na medida em que, como seres humanos, nos tornarmos verdadeiramente humanos e os impulsos irracionais deixarem de ser a principal força motivadora subjacente em nossas ações.

Isso leva-nos à questão seguinte: que impulsos são necessários à sobrevivência da espécie humana? A agressão e a destrutividade podem ajudar um grupo a erradicar um outro e assim assegurar sua própria sobrevivência, mas esses impulsos assumem um significado diferente se os considerarmos no contexto da humanidade como um todo. Se a agressividade se propagasse à população humana inteira, culminaria não só na destruição de um grupo ou outro, mas, em última instância, na erradicação de toda a espécie humana. No passado, tal pensamento não se relacionava com a realidade e consistia meramente em especulação ociosa. Hoje, o nosso amor à vida atingiu seu ponto mais baixo. A destruição da humanidade como um todo é uma possibilidade concreta, porque dispomos hoje de meios de autodestruição maciça e porque brincamos realmente com a ideia de utilizá-los. Hoje, temos de compreender que o princípio de sobrevivência dos mais aptos – a irrestrita vontade de poder de Estados soberanos – pode resultar na destruição da humanidade inteira.

No século XIX, Emerson disse: “As coisas estão na sela e cavalgam a humanidade”. Hoje podemos dizer: “O homem fez das coisas seus ídolos e o culto desses ídolos pode destruí-lo”.

Dizem-nos repetidamente não haver limites para a maleabilidade dos seres humanos e, à primeira vista, isso parece ser verdadeiro. Um exame do comportamento humano através dos tempos mostra-nos não existir praticamente nenhum ato, do mais nobre ao mais vil, de que o homem não seja capaz e não tenha realmente realizado. Mas tese da maleabilidade dos seres humanos sofre restrições. Qualquer comportamento que não sirva ao crescimento de uma pessoa, ao seu progresso no sentido da autorrealização, tem seu alto preço. O explorador teme o explorado. O homicida teme o isolamento a que suas façanhas o condenam, mesmo que o isolamento não assuma a forma de isolamento na prisão. O destruidor teme sua própria consciência. O consumidor sem alegria teme viver sem estar verdadeiramente vivo.

Implícita na afirmação que o homem é infindavelmente maleável está a possibilidade que ele possa estar vivo, do ponto de vista fisiológico, mas mutilado num sentido humano. Tal pessoa será infeliz. Não experimentará nenhuma alegria. Estará repleta de amargura, e a amargura a tornará destrutiva. Somente se ela puder libertar-se desse círculo vicioso reabrirá a possibilidade para a alegria. Se pusermos de lado condições patológicas congênitas, podemos dizer que os seres humanos são psiquicamente saudáveis ao nascer. Eles só se incapacitam nas mãos de outros que querem exercer total controle sobre seus semelhantes, que odeiam a vida e que não suportam ouvir risos de alegria. Se uma criança fica então mutilada, eles sentem-se justificados em sua atitude hostil para com essa criança e consideram sua hostilidade uma consequência do comportamento doentio da criança, não sua causa.

Por que quereria alguém fazer de outrem um mutilado? A resposta a essa pergunta reside no que eu disse a respeito do canibalismo que ainda está presente hoje em nossa sociedade. Uma pessoa psiquicamente mutilada pode ser mais facilmente explorada por uma forte. A pessoa forte pode revidar; a fraca não pode. Ela está à mercê das pessoas malévolas no poder. Quanto mais um grupo dominante pode converter em mutilados psíquicos aqueles a quem domina, mais fácil é para ele explorar seus subordinados, usando-os para promover seus próprios fins.

Por ser o homem dotado de razão, ele pode analisar criticamente sua experiência e discernir o que promove seu desenvolvimento e o que o impede. Trabalha para alcançar o mais harmonioso crescimento possível de todos os seus poderes mentais e físicos, tendo por meta final a realização do bem-estar. O oposto do bem-estar é a depressão, como demonstrou Spinoza. Isso sugere que a alegria é um produto da razão e a depressão é o que resulta de um modo incorreto de vida. Isso encontra a mais clara das confirmações no Antigo Testamento, onde é interpretado como grave pecado por parte dos israelitas que suas vidas sejam desprovidas de alegria, ainda que vivam no meio da abundância.

Os pressupostos básicos da sociedade industrial estão em conflito com o bem-estar humano. Quais são esses pressupostos? O primeiro pressuposto básico é que a natureza tem de ser controlada. Mas a sociedade pré-industrial não controlou também a natureza? É claro que sim; caso contrário, o homem já teria morrido de fome há muito tempo. Mas o modo como controlamos a natureza na sociedade industrial é distinto de como as sociedades agrícolas o fizeram. Isso é particularmente verdadeiro a partir do momento em que a sociedade industrial passou a usar a tecnologia para controlar a natureza. A tecnologia usa a capacidade de pensar do homem para produzir coisas. É o substituto masculino do ventre feminino. Por isso é que no começo do Antigo Testamento se descreve como Deus criou o mundo através do Verbo. No mais antigo mito babilônico da criação, é a Grande Mãe quem gera o mundo.

O segundo pressuposto básico da sociedade industrial é que os seres humanos podem ser explorados por meio da força, recompensas ou – com maior frequência – uma combinação de ambas.

O terceiro pressuposto é que a atividade econômica tem que ser lucrativa. Na sociedade industrial, o motivo de lucro não é, primordialmente, uma expressão de ganância pessoal, mas antes, um teste para a correção do comportamento econômico.

Não produzimos bens para serem usados, embora a maioria dos bens tenha que ter algum valor utilitário se quiserem ser vendáveis. Produzimos bens para obter lucro. O resultado final de minha atividade econômica tem que ser que ganho mais do que tenho de gastar para a produção ou aquisição de bens comerciáveis. É um ero comum representar o motivo de lucro como um traço psicológico pessoal, peculiar das pessoas gananciosas. O desejo de lucro pode, é claro, ser apenas isso, mas tal noção do motivo de lucro não caracteriza a norma típica numa sociedade industrial moderna. O lucro é simplesmente uma prova de comportamento econômico correto e, por conseguinte, um critério para a competência nos negócios.

Um quarto traço, que é uma característica clássica das sociedades industriais, é a competição. A história mostrou, porém, que como resultado da crescente centralização e das dimensões de algumas empresas – e como resultado, também, da ilegal mas, não obstante, praticada fixação de preços – a competição entre grandes companhias deu lugar à cooperação. Onde existe competição, é mais provável que ocorra entre duas pequenas lojas de varejo do que entre grandes organizações industriais. Em toda a nossa moderna ordem econômica, inexistem vínculos emocionais entre vendedor e comprador. Em épocas antigas, havia uma relação especial entre um comerciante e seu freguês. O comerciante estava interessado em seu freguês e a venda era mais do que uma transação financeira. O negociante sentia uma certa satisfação em vender à sua clientela um artigo que era útil e atraente. Isso ainda acontece hoje, é claro, mas é a exceção e está limitado principalmente a pequenas lojas de um tipo antiquado. Numa dispendiosa loja de departamentos, os vendedores sorriem polidamente. De um modo vulgar, põem os olhos indiferentemente no espaço. Não precisaria assinalar que o sorriso na loja cara é falso e faz parte das despesas gerais refletidas nos preços mais elevados.

O quinto ponto que quero mencionar é que a capacidade de simpatia reduziu-se muito no nosso século. E deveria talvez acrescentar que a capacidade de sofrimento encolheu com ela. Não quero dizer com isso, é claro, que as pessoas sofrem hoje menos do que era costume. Mas encontram-se tão alienadas de si mesmas que já não possuem plena consciência de seu sofrimento. Tal como alguém com uma dor física crônica, elas acabam aceitando seu sofrimento como um dado normal e só o percebem quando ele aumenta além de sua intensidade usual. Mas não deveríamos esquecer que o sofrimento é a única emoção que parece ser verdadeiramente comum a todos os seres humanos, na verdade, talvez, a todos os seres sencientes. Por essa razão, uma pessoa sofredora que reconhece até que ponto o sofrimento é generalizado pode sentir o consolo da solidariedade humana.

Existem muitas, inúmeras, pessoas que nunca conheceram a felicidade. Mas não existe uma só que nunca tenha sofrido, por mais obstinadamente que tenha lutado para reprimir sua própria consciência do sofrimento. A simpatia é inseparável do amor à humanidade. Onde não há amor não pode haver simpatia nem compaixão. A indiferença é o oposto da compaixão e podemos descrever a indiferença como um estado patológico com tendências esquizóides. O que passa por ser amor por um outro individuo prova, com frequência, não ser mais do que dependência dessa pessoa. Quem ama somente uma pessoa não ama realmente ninguém.



* FROMM, Erich. Do amor à vida. Palestras radiofônicas organizadas por Hansd Jürgen Schultz. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.


Novos livros de Erich Fromm adicionados!



Novos Livros adicionados de Erich Fromm:

8. LA REVOLUCIÓN DE LA ESPERANZA - ERICH FROMM (ESPANHOL).

9. A DESCOBERTA DO INCONSCIENTE SOCIAL - ERICH FROMM

10. LA VIDA AUTÊNTICA - ERICH FROMM

11. ZEN BUDISMO E A PSICANÁLISE - ERICH FROMM E OUTROS.

12. PSICANÁLISE E RELIGIÃO - ERICH FROMM

13. ANÁLISE DO HOMEM - ERICH FROMM

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quarta-feira, 17 de julho de 2019

Credo de um humanista


Credo de um humanista*

Erich Fromm

- Creio que a unidade do ser humano resulte do fato de o homem ser uma vida autoconsciente. Nisso ele se distingue dos outros seres vivos. O ser humano é consciente de si mesmo: do seu futuro (isto é, do fato que irá morrer), da sua pequenez e impotência, ele percebe os outros enquanto outros, vive na natureza e está submetido às suas leis, mesmo transcendendo-a nos seus pensamentos.

- Creio que o ser humano é resultado de uma evolução natural proveniente do conflito de ser ligado à natureza e igualmente separado dela, e da necessidade de encontrar união e harmonia com a natureza.

- Creio que a natureza do ser humano, abarcada naquela contradição que está enraizada nas condições da existência humana e faz a busca de soluções necessárias, que, por sua vez, produz novas contradições e a necessidade de novas respostas.

- Creio que cada resposta dada às contradições cumpra seu pressuposto ao ajudar o ser humano a superar sua sensação de separação e de alcançar uma sensibilidade de aceitação, de união e de ligação a alguém.

- Creio que o ser humano tem, em cada resposta dada a essas contradições, a opção entre avançar ou retroceder. Essas opções, que se manifestam em determinadas ações, são os caminhos pelos quais regredimos ou progredimos enquanto seres humanos.

- Creio que o ser humano tem, fundamentalmente, a opção entre a vida e a morte; entre criatividade e violência destrutiva; entre bom senso realista e ilusão; entre objetividade e intolerância; e entre uma independência fraterna e uma relação à base de domínio e submissão.

- Creio que se pode atribuir à vida o significado de um nascimento permanente e de um desenvolvimento constante. 

- Creio que podemos atribuir à morte o significado do fim do crescimento e da reiteração permanente.

- Creio que o ser humano que der uma resposta regressiva procura alcançar a unidade, libertando-se do medo insuportável da solidão e incerteza, desfigurando aquilo que o torna humano e o atormenta. A orientação regressiva desenvolve-se em três modalidades, que podem se manifestar separadamente ou em conjunto: na necrofilia, no narcisismo e na simbiose incestuosa. Entendo como necrofilia o amor a tudo que tem a ver com violência e destrutividade; a vontade de matar; a admiração pelo poder, a atração por coisas mortas, pelo suicídio, pelo sadismo; a vontade de transformar o orgânico por meio de “ordem” em algo anorgânico. Como faltam ao necrófilo as qualidades necessárias para algo criativo, destruir é para ele, em sua incapacidade, fácil, pois tudo gira em torno da violência.

Entendo como narcisismo que o ser humano perde o interesse vivo pelo mundo exterior e mostra um intenso apego a si mesmo, seu próprio grupo, seu clã, sua religião, nação, raça etc. Isso leva a graves distorções em sua capacidade racional de discernimento. Geralmente surge a necessidade de satisfação narcisista a fim de compensar a pobreza material ou cultural. Entendo como simbiose incestuosa a tendência de continuar ligado à mãe e suas substitutas – o sangue, a família, a tribo – para poder fugir do fardo insuportável da responsabilidade, da liberdade e da consciência e receber proteção e amor num refúgio de segurança e dependência. Cada um para por isso com o fim/a estagnação do seu desenvolvimento pessoal.

- Creio que o ser humano que opta pelo progredir encontrará uma nova unidade, na qual ele levará todas as suas capacidades humanas ao pleno desenvolvimento. Elas podem se desenvolver e se manifestar separadamente ou em conjunto: na biofilia, no amor a humanidade e a natureza, e em independência e liberdade.

- Creio que o amor seja a chave-mestra pela qual podem ser abertos os portões para o crescimento do ser humano. Entendo isso como ‘amor a ...” e estar unido com...’ algum outro ou alguma coisa fora de si mesmo, conquanto significa estar unido estar relacionado com outros e se sentir unido a eles, sem precisar diminuir a sensibilidade pela própria integridade e independência. Amor é uma orientação produtiva, em cuja essência estão presentes, simultaneamente, os seguintes aspectos: temos que nos interessar por aquele com quem queremos estar unidos, sentir-nos responsáveis por ele, respeitá-lo e entendê-lo. 

- Creio que a realização do amor seja a atividade mais humana e humanizadora que é dado ao homem para a alegria de viver. Mas, para esta realização, vale o mesmo para a capacidade do discernimento: ele perde o sentido se for cumprida só pela metade.

- Creio que precisamos estar “livres de “nossos laços internos e/ou externos a fim de que possamos estar “livres para” algo: um fazer criativo, “poietikón”, para mais conhecimento e consciência etc. Só nestas condições somos capazes de ser livres, atuantes e responsáveis.

- Creio que a liberdade seja a capacidade de seguir a voz do discernimento e do conhecimento e de resistir às vozes de paixões irracionais. Ela é a emancipação que liberta o ser humano e nivela caminho para ele fazer uso das suas faculdades de discernimento, entender o mundo em sua objetividade e reconhecer o papel que representa nele.

- Creio que a “luta pela libertação” geralmente tem o significado principal de se opor às autoridades que nos foram impostas e cuja finalidade era quebrar a vontade de cada um. Hoje, a “luta pela libertação” deveria significar que nos libertamos, individual e coletivamente, daquela autoridade a qual nos submetíamos “voluntariamente”. Deveríamos nos libertar daquelas forças internas que nos coagem a esta submissão ao tornar-nos incapazes de suportar a liberdade.

- Creio que a liberdade não seja uma constante qualidade essencial que possuímos ou não. Provavelmente ela existe apenas no ato da nossa autolibertação, quando fazemos uso da nossa liberdade de optar. Cada passo na vida que aumenta o grau da maturidade do ser humano aumenta igualmente a capacidade de optar pela alternativa libertadora.

- Creio que a “liberdade de escolha” não seja dada a todos os seres humanos em cada momento de maneira igual. Quem é exclusivamente necrófilo, narcisista ou simbiótico-incestuoso tem apenas uma única “opção” de se decidir pela regressão. O homem livre, liberto de todas as ligações irracionais, não pode fazer uma opção regressiva.

- Creio que o problema da liberdade de escolha exista só em pessoas com orientações opostas, e que essa escolha esteja condicionada fortemente por desejos inconscientes e racionalizações atenuantes.

- Creio que ninguém possa “redimir” o próximo ao tomar decisões em seu lugar. O único auxílio consta em indicar com sinceridade e amor, sem sentimentalismo ou ilusões, as possíveis alternativas. A conscientização cognoscível das alternativas libertadoras pode despertar no ser humano todas as suas energias escondidas e encaminhá-lo para optar pela vida em vez da morte.

- Creio que o ser humano pode sentir a igualdade de todos os homens quando ele tenta conhecer a si mesmo por completo e percebe que é semelhante ao outro e se identifica com ele. Todo ser humano carrega dentro de si toda a humanidade. A conditio humana é una, igual para todos os seres humanos, apesar das intransponíveis diferenças em relação à inteligência, aptidão, estatura, cor etc.

- Creio ser necessário lembrar a igualdade de todos os seres humanos, porque temos que acabar com essa atitude de tornar uma pessoa o instrumento da outra.

- Creio que a fraternidade seja o amor dirigido ao próximo. Ela permanece uma palavra vazia enquanto não forem extintas todas as fixações incestuosas que inibem o ser humano em julgar sobre o “irmão” de maneira objetiva.

- Creio que cada um não pode entrar em contato estreito com a humanidade dentro de si enquanto não começar a transcender sua sociedade e a reconhecer de que maneira ela favorece ou inibe o desenvolvimento do seu potencial humano. Se ao ser humano resultam como “naturais” as proibições, as restrições e as deturpações dos valores, é sinal de que ele ainda não alcançou o verdadeiro conhecimento da natureza humana.

- Creio que a sociedade em sua função estimulante e igualmente inibidora sempre esteve em conflito como nossa natureza humana. A sociedade não deixará de paralisar o ser humano e promover a dominação até que sua finalidade coincida com a natureza humana.

- Creio que podemos e devemos esperar por uma sociedade sadia e sensata? Tal sociedade encorajará a capacidade do ser humano ao amor ao próximo, ao trabalho, à criatividade, ao desenvolvimento da sua racionalidade e a uma autopercepção objetivamente correta, que se fundamenta na experiência da própria energia produtiva.

- Creio que uma larga faixa da população possa e deva esperar a recuperação da sua saúde psíquica. Ela está marcada pela capacidade de amar e de criar, pela libertação dos laços incestuosas ao clã e a terra, pelo experienciar da identidade na qual cada um se sente como sujeito e executor das suas próprias forças, pela capacidade de se deixar tocar pela realidade interna e externa e de realizar o desenvolvimento de objetividade de discernimento.

- Creio que na medida em que nosso mundo parece se tornar louco e desumano, um número cada vez maior de pessoas sentirá a necessidade de se unir e de colaborar com outros que compartilham suas preocupações. [133]

- Creio que as pessoas de boa vontade não deveriam apenas chegar a uma interpretação humana do mundo, mas deveriam igualmente indicar o caminho para isso e trabalhar para uma possível modificação. Uma interpretação sem a vontade de mudar é inútil, uma modificação sem interpretação prévia é cega.

- Creio na realização de um mundo em que seja possível para o ser humano ser muito, mesmo quando possui pouco; no qual o motivo predominante da sua vida não seja o consumo; no qual o ser humano é a primeira e última finalidade; no qual o ser humano pode encontrar um caminho de dar um sentido à sua vida e no qual ele encontra a força necessária para uma vida livre e sem ilusões.




* Credo de um humanista, in: RALPH R. Gniss (org.). Mudar a Educação a partir do Pensamento de Erich Fromm. Goiânia: Kelps, 2011, pp. 129-133. Tradução de Ralph R. Gniss.