sexta-feira, 19 de julho de 2019

QUEM É HOMEM?



QUEM É HOMEM? *

Erich Fromm

A pergunta “Quem é homem?” leva-nos diretamente ao âmago do problema. Se o homem fosse uma coisa, então poderíamos perguntar o que ele é e defini-lo do modo que definimos um objeto na natureza ou um produto industrial. Mas o homem não é uma coisa e não pode ser definido do mesmo modo que definimos uma coisa. Apesar disso, entretanto, o homem é frequentemente visto como uma coisa. É descrito como um operário, um gerente de fábrica, um médico, etc. Mas tais descrições nos dizem apenas qual é a função social de um indivíduo. Em outras palavras: o homem é definido em termos de seu lugar na sociedade.

O homem não é uma coisa; é um ser vivo envolvido num processo contínuo de desenvolvimento. Em cada ponto de sua vida, ele ainda não é o que pode ser e o que ainda pode vir a ser.

Embora o homem não possa ser definido do modo que definimos uma mesa ou um relógio, ele não foge inteiramente à definição. Podemos dizer mais sobre ele do que não é uma coisa mas um processo vivo, O mais importante aspecto da definição de homem é que seu pensamento pode ir muito além da satisfação de suas necessidades físicas. Para ele, pensar não é – como para um animal – simplesmente um meio de obtenção de bens desejados; é também um meio de exploração da realidade do seu próprio ser e do mundo à sua volta, independentemente de suas simpatias e antipatias. Em outras palavras: o homem não só tem inteligência, o que os animais também possuem, mas tem ainda razão, a qual ele pode usar para perceber a verdade. Quando o homem se deixa guiar por sua razão, atua de acordo com os seus melhores interesses como ser intelectual e físico.

Mas sabemos por experiência que muitas pessoas, cegas pela cobiça e a vaidade, não atuam racionalmente em suas vidas privadas. Pior ainda, as ações de nações são guiadas ainda menos pela razão, porque os demagogos estão sempre a postos para fazer o cidadão esquecer que levarão sua cidade e seu mundo à ruína se der crédito aos demagogos. Muitas nações caminharam irremediavelmente para a destruição por não terem logrado se libertar das emoções irracionais que estavam determinando seu comportamento e por não terem aprendido o caminho da razão. A tarefa crucial que os profetas do Antigo Testamento realizaram não foi, como pensa muita gente, predizer o futuro. Foi proclamar a verdade e, assim, sugerir indiretamente quais seriam as consequências futuras das ações presentes das pessoas.

Como o homem não é algo que possamos descrever desde fora, por assim dizer, temos que recorrer à nossa própria experiência pessoal como seres humanos para defini-lo. Portanto, a pergunta “Quem é homem?” obriga-nos a indagar, “Quem sou eu?”. Se queremos evitar o erro de tratar o homem como uma coisa, a única resposta que podemos dar à pergunta “Quem sou eu?” é: “um ser humano”.

A maioria das pessoas nunca tomou conhecimento de sua identidade como ser humano. Elas criam toda a espécie de imagens ilusórias de si mesmas, suas qualidades e sua identidade. Responderão frequentemente à nossa pergunta como “Sou professor”, “Sou operário”, “Sou médico”. Mas essa informação sobre o trabalho de uma pessoa nada nos diz sobre essa pessoa e não contém qualquer pista para ajudar-nos a responder à pergunta “Quem é ele?”, “Quem sou eu?”.

Neste ponto, deparamo-nos ainda com uma outra dificuldade. Todos temos uma certa orientação social, moral e psicológica. Quando e como sei se uma direção que alguém tomou será sua direção permanente ou se alguma experiência poderosa será capaz de fazê-la mudar de orientação? As pessoas atingirão um ponto em que estão fixadas tão firmemente em seus rumos que se posa corretamente dizer delas que são quem são e nunca mudarão? Estatisticamente pode ser possível dizer isso de muita gente.

Mas poderemos dizê-lo a respeito de cada pessoa até o dia de sua morte, e poderemos dizê-lo se considerarmos que talvez ela mudasse se tivesse vivido mais tempo?

Podemos definir o homem ainda de uma outra maneira. Ele é guiado por dois tipos de emoções e impulsos. Um tipo é de origem biológica e basicamente o mesmo em todas as pessoas. Inclui tudo o que se enquadra nos requisitos para a sobrevivência: a necessidade de satisfazer a fome e a sede, a necessidade de proteção, a necessidade de alguma forma de estrutura social e, num grau muito menor, a necessidade de realização sexual. As emoções do segundo tipo não têm raízes na biologia e não são idênticas para todas as pessoas. Essas emoções – como amor, alegria, solidariedade, inveja, ódio, ciúme, competitividade, cobiça, etc. – originam-se em diferentes estruturas sociais. No caso do ódio, temos que distinguir entre ódio reativo e endógeno.

Entendemos esses termos como paralelos à depressão reativa e endógena. O ódio reativo é uma resposta a um ataque ou uma ameaça a nós mesmos ou ao nosso grupo, e passa usualmente assim que o perigo passou. O ódio endógeno é um traço de caráter. Uma pessoa cheia dessa espécie de ódio está sempre buscando novos meios de passar ao ato, de concretizar esse ódio.

Ao invés das emoções de base biológica, as emoções socialmente geradas que acabei de mencionar são produtos de estruturas sociais específicas. Numa sociedade onde uma minoria exploradora domina uma maioria indefesa e empobrecida, existe ódio de ambos os lados. É mais do que óbvio que a maioria explorada sentirá ódio. Entretanto, o ódio da minoria dominante será alimentado pelo medo da vingança que os oprimidos posam um dia levar a efeito. Além disso, a minoria tem que odiar as massas a fim de sufocar seus próprios sentimentos de culpa e justificar sua exploração. O ódio não desaparecerá enquanto faltarem justiça e igualdade. Do mesmo modo, a verdade não prevalecerá enquanto as pessoas tiverem que mentir para justificar suas violações dos princípios de igualdade e justiça.

Algumas pessoas afirmam que princípios como igualdade e justiça são ideologias que se desenvolveram no curso da história e não fazem parte do equipamento básico, natural, do homem. Não posso dedicar-me aqui a uma refutação desse argumento, mas quero enfatizar um ponto que fala contra ele: o modo como as pessoas reagem se um grupo hostil viola os princípios de justiça e igualdade demonstra que as pessoas têm, no mais profundo de seu íntimo, um forte sentido desses valores. A sensibilidade da consciência humana em nenhuma parte é mais evidente do que no modo como a maioria das pessoas reage até às mais pequenas violações da justiça e da igualdade, desde que, é claro, não sejam elas próprias as acusadas de cometer tais violações; E assim é que a consciência encontra veemente expressão nas acusações que grupos nacionais fazem contra seus inimigos. Se as pessoas não possuíssem sensibilidade moral natural, como seria possível incitá-las a tão violentas paixões informando-as sobre as atrocidades que se alega terem sido cometidas por seus inimigos?

Ainda uma outra definição de homem diz que ele é um ser em que o governo instintivo do comportamento foi reduzido a um mínimo. O homem reteve, obviamente, certos elementos da motivação instintiva, como em sua necessidade de satisfazer a fome e de se reproduzir. Mas é somente quando a sobrevivência do indivíduo ou da comunidade está em jogo que o homem é primariamente motivado pelo instinto. A maioria dos impulsos que motivam as pessoas – ambição, inveja, ciúme, vingança – surge e é alimentada por constelações sociais específicas. O fato de que esses impulsos podem assumir prioridade, até mesmo sobre o instinto de sobrevivência, demonstra até que ponto eles podem ser poderosos. As pessoas estão frequentemente preparadas para sacrificar a vida a serviço tanto de seus ódios e ambições quanto de seus amores e lealdades.

O mais abominável de todos os impulsos humanos, a necessidade de usar uma outra pessoa para satisfazer os próprios fins, em virtude do próprio poder sobre essa pessoa, pouco mais é do que uma forma refinada de canibalismo. Esse impulso irrefreável para usar outros com vistas aos nossos próprios fins era desconhecido nas sociedades neolíticas. Para quase todos os que vivemos hoje é praticamente impossível imaginar que tivesse havido alguma vez um período histórico em que os homens não queriam explorar nem eram explorados. Mas esse tempo existiu. Nas primitivas culturas de caçadores-coletores e agrícolas, todos tinham o suficiente para viver e seria despropositado acumular bens. A propriedade privada não podia ainda ser investida como capital e usada como fonte de poder.

Essa fase do pensamento humano está refletida de forma simbólica no Antigo Testamento. Os filhos de Israel foram alimentados no deserto com maná. Havia maná em abundância e todos podiam comer quanto quisessem, mas o maná não podia ser armazenado. Tudo o que não fosse comido estragava-se e desaparecia no mesmo dia. Não adiantava especular sobre se viria logo ou não mais maná. Mas bens como cereais ou fermentas não desaparecem. Podem ser acumulados e dar poder àqueles que possuem maior quantidade de tais bens. Somente quando os excedentes começaram a ultrapassar um certo limite é que se tornaram vantajosos para a classe dominante, a fim de exercer o poder sobre outras classes e obrigá-las a executar trabalhos para os seus senhores, aceitando como seu quinhão o estritamente mínimo necessário à existência. O triunfo do Estado patriarcal fez dos escravos, trabalhadores e mulheres as principais vítimas da exploração.

Somente quando o homem deixar de ser um artigo de consumo para o seu “semelhante” mais forte, poderá o nosso período canibalístico, pré-histórico, terminar, e a nossa história verdadeiramente humana começar. Para que se efetue tal mudança, teremos que adquirir plena consciência de até que ponto são criminosos os nossos modos e costumes canibalísticos. Mas até a plena consciência permanecerá ineficaz se não for acompanhada de um remorso igualmente abrangente.

O remorso é mais do que sentirmo-nos meramente arrependidos a respeito de algo. O remorso é uma emoção poderosa. Uma pessoa com remorsos sente verdadeira repulsa por si mesma e pelo que fez. O remorso e a vergonha que o acompanha são as únicas emoções humanas que podem impedir que velhos crimes sejam repetidos continuamente. Onde não há remorso pode surgir a ilusão de que não foram cometidos crimes. Mas onde encontramos qualquer remorso genuíno? Os israelitas sentiram remorso pelo genocídio que perpetraram contra as tribos de Canaã? Os americanos sentem remorso pelo extermínio quase completo dos índios? Durante milênios o homem tem vivido num sistema que alivia o vencedor de remorso porque equipara poder e direito. Cada um de nós deveria confessar plenamente os crimes que nossos antepassados, nossos contemporâneos ou nós mesmos cometemos, diretamente ou através de omissão quando deveríamos protestar. Devemos confessar esses crimes abertamente, publicamente, em forma ritual, por assim dizer. A Igreja católica romana oferece ao indivíduo a oportunidade de confessar seus pecados e deixa que a voz da consciência seja ouvida. Mas a confissão individual não é bastante, porque não envolve os crimes que são cometidos por um grupo, uma classe, uma nação ou, de suma importância, por um Estado soberano, o qual não está sujeito aos ditames da consciência individual. Enquanto formos relutantes em fazer “confissões de culpa nacional”, continuaremos adotando os nossos velhos hábitos, mantendo os olhos abertos para os crimes dos nossos inimigos, mas permanecendo cegos para os crimes do nosso próprio povo.

Como podem os indivíduos começar a obedecer aos ditames da consciência de um modo sério quando nações, que professam ser guardiãs da moralidade, agem sem consideração alguma pela consciência? O que inevitavelmente se segue é que a voz da consciência é silenciada em cada ocasião, pois a consciência é não menos divisível do que a verdade. Se a razão humana pretende tornar-se um guia efetivo para as nossas ações, ela não pode ser dominada por emoções irracionais. A inteligência continua sendo inteligência, mesmo quando devotada a fins perversos. A razão, porém, a nossa percepção consciente da realidade tal como é e não como gostaríamos de vê-la a fim de podermos explorá-la para os nossos próprios fins – a razão, nesse sentido, só pode ser eficaz na medida em que pusermos de lado as nossas emoções irracionais, isto é, na medida em que, como seres humanos, nos tornarmos verdadeiramente humanos e os impulsos irracionais deixarem de ser a principal força motivadora subjacente em nossas ações.

Isso leva-nos à questão seguinte: que impulsos são necessários à sobrevivência da espécie humana? A agressão e a destrutividade podem ajudar um grupo a erradicar um outro e assim assegurar sua própria sobrevivência, mas esses impulsos assumem um significado diferente se os considerarmos no contexto da humanidade como um todo. Se a agressividade se propagasse à população humana inteira, culminaria não só na destruição de um grupo ou outro, mas, em última instância, na erradicação de toda a espécie humana. No passado, tal pensamento não se relacionava com a realidade e consistia meramente em especulação ociosa. Hoje, o nosso amor à vida atingiu seu ponto mais baixo. A destruição da humanidade como um todo é uma possibilidade concreta, porque dispomos hoje de meios de autodestruição maciça e porque brincamos realmente com a ideia de utilizá-los. Hoje, temos de compreender que o princípio de sobrevivência dos mais aptos – a irrestrita vontade de poder de Estados soberanos – pode resultar na destruição da humanidade inteira.

No século XIX, Emerson disse: “As coisas estão na sela e cavalgam a humanidade”. Hoje podemos dizer: “O homem fez das coisas seus ídolos e o culto desses ídolos pode destruí-lo”.

Dizem-nos repetidamente não haver limites para a maleabilidade dos seres humanos e, à primeira vista, isso parece ser verdadeiro. Um exame do comportamento humano através dos tempos mostra-nos não existir praticamente nenhum ato, do mais nobre ao mais vil, de que o homem não seja capaz e não tenha realmente realizado. Mas tese da maleabilidade dos seres humanos sofre restrições. Qualquer comportamento que não sirva ao crescimento de uma pessoa, ao seu progresso no sentido da autorrealização, tem seu alto preço. O explorador teme o explorado. O homicida teme o isolamento a que suas façanhas o condenam, mesmo que o isolamento não assuma a forma de isolamento na prisão. O destruidor teme sua própria consciência. O consumidor sem alegria teme viver sem estar verdadeiramente vivo.

Implícita na afirmação que o homem é infindavelmente maleável está a possibilidade que ele possa estar vivo, do ponto de vista fisiológico, mas mutilado num sentido humano. Tal pessoa será infeliz. Não experimentará nenhuma alegria. Estará repleta de amargura, e a amargura a tornará destrutiva. Somente se ela puder libertar-se desse círculo vicioso reabrirá a possibilidade para a alegria. Se pusermos de lado condições patológicas congênitas, podemos dizer que os seres humanos são psiquicamente saudáveis ao nascer. Eles só se incapacitam nas mãos de outros que querem exercer total controle sobre seus semelhantes, que odeiam a vida e que não suportam ouvir risos de alegria. Se uma criança fica então mutilada, eles sentem-se justificados em sua atitude hostil para com essa criança e consideram sua hostilidade uma consequência do comportamento doentio da criança, não sua causa.

Por que quereria alguém fazer de outrem um mutilado? A resposta a essa pergunta reside no que eu disse a respeito do canibalismo que ainda está presente hoje em nossa sociedade. Uma pessoa psiquicamente mutilada pode ser mais facilmente explorada por uma forte. A pessoa forte pode revidar; a fraca não pode. Ela está à mercê das pessoas malévolas no poder. Quanto mais um grupo dominante pode converter em mutilados psíquicos aqueles a quem domina, mais fácil é para ele explorar seus subordinados, usando-os para promover seus próprios fins.

Por ser o homem dotado de razão, ele pode analisar criticamente sua experiência e discernir o que promove seu desenvolvimento e o que o impede. Trabalha para alcançar o mais harmonioso crescimento possível de todos os seus poderes mentais e físicos, tendo por meta final a realização do bem-estar. O oposto do bem-estar é a depressão, como demonstrou Spinoza. Isso sugere que a alegria é um produto da razão e a depressão é o que resulta de um modo incorreto de vida. Isso encontra a mais clara das confirmações no Antigo Testamento, onde é interpretado como grave pecado por parte dos israelitas que suas vidas sejam desprovidas de alegria, ainda que vivam no meio da abundância.

Os pressupostos básicos da sociedade industrial estão em conflito com o bem-estar humano. Quais são esses pressupostos? O primeiro pressuposto básico é que a natureza tem de ser controlada. Mas a sociedade pré-industrial não controlou também a natureza? É claro que sim; caso contrário, o homem já teria morrido de fome há muito tempo. Mas o modo como controlamos a natureza na sociedade industrial é distinto de como as sociedades agrícolas o fizeram. Isso é particularmente verdadeiro a partir do momento em que a sociedade industrial passou a usar a tecnologia para controlar a natureza. A tecnologia usa a capacidade de pensar do homem para produzir coisas. É o substituto masculino do ventre feminino. Por isso é que no começo do Antigo Testamento se descreve como Deus criou o mundo através do Verbo. No mais antigo mito babilônico da criação, é a Grande Mãe quem gera o mundo.

O segundo pressuposto básico da sociedade industrial é que os seres humanos podem ser explorados por meio da força, recompensas ou – com maior frequência – uma combinação de ambas.

O terceiro pressuposto é que a atividade econômica tem que ser lucrativa. Na sociedade industrial, o motivo de lucro não é, primordialmente, uma expressão de ganância pessoal, mas antes, um teste para a correção do comportamento econômico.

Não produzimos bens para serem usados, embora a maioria dos bens tenha que ter algum valor utilitário se quiserem ser vendáveis. Produzimos bens para obter lucro. O resultado final de minha atividade econômica tem que ser que ganho mais do que tenho de gastar para a produção ou aquisição de bens comerciáveis. É um ero comum representar o motivo de lucro como um traço psicológico pessoal, peculiar das pessoas gananciosas. O desejo de lucro pode, é claro, ser apenas isso, mas tal noção do motivo de lucro não caracteriza a norma típica numa sociedade industrial moderna. O lucro é simplesmente uma prova de comportamento econômico correto e, por conseguinte, um critério para a competência nos negócios.

Um quarto traço, que é uma característica clássica das sociedades industriais, é a competição. A história mostrou, porém, que como resultado da crescente centralização e das dimensões de algumas empresas – e como resultado, também, da ilegal mas, não obstante, praticada fixação de preços – a competição entre grandes companhias deu lugar à cooperação. Onde existe competição, é mais provável que ocorra entre duas pequenas lojas de varejo do que entre grandes organizações industriais. Em toda a nossa moderna ordem econômica, inexistem vínculos emocionais entre vendedor e comprador. Em épocas antigas, havia uma relação especial entre um comerciante e seu freguês. O comerciante estava interessado em seu freguês e a venda era mais do que uma transação financeira. O negociante sentia uma certa satisfação em vender à sua clientela um artigo que era útil e atraente. Isso ainda acontece hoje, é claro, mas é a exceção e está limitado principalmente a pequenas lojas de um tipo antiquado. Numa dispendiosa loja de departamentos, os vendedores sorriem polidamente. De um modo vulgar, põem os olhos indiferentemente no espaço. Não precisaria assinalar que o sorriso na loja cara é falso e faz parte das despesas gerais refletidas nos preços mais elevados.

O quinto ponto que quero mencionar é que a capacidade de simpatia reduziu-se muito no nosso século. E deveria talvez acrescentar que a capacidade de sofrimento encolheu com ela. Não quero dizer com isso, é claro, que as pessoas sofrem hoje menos do que era costume. Mas encontram-se tão alienadas de si mesmas que já não possuem plena consciência de seu sofrimento. Tal como alguém com uma dor física crônica, elas acabam aceitando seu sofrimento como um dado normal e só o percebem quando ele aumenta além de sua intensidade usual. Mas não deveríamos esquecer que o sofrimento é a única emoção que parece ser verdadeiramente comum a todos os seres humanos, na verdade, talvez, a todos os seres sencientes. Por essa razão, uma pessoa sofredora que reconhece até que ponto o sofrimento é generalizado pode sentir o consolo da solidariedade humana.

Existem muitas, inúmeras, pessoas que nunca conheceram a felicidade. Mas não existe uma só que nunca tenha sofrido, por mais obstinadamente que tenha lutado para reprimir sua própria consciência do sofrimento. A simpatia é inseparável do amor à humanidade. Onde não há amor não pode haver simpatia nem compaixão. A indiferença é o oposto da compaixão e podemos descrever a indiferença como um estado patológico com tendências esquizóides. O que passa por ser amor por um outro individuo prova, com frequência, não ser mais do que dependência dessa pessoa. Quem ama somente uma pessoa não ama realmente ninguém.



* FROMM, Erich. Do amor à vida. Palestras radiofônicas organizadas por Hansd Jürgen Schultz. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.


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