QUEM É HOMEM? *
Erich Fromm
A pergunta “Quem é homem?” leva-nos diretamente ao âmago do
problema. Se o homem fosse uma coisa, então poderíamos perguntar o que ele é e
defini-lo do modo que definimos um objeto na natureza ou um produto industrial.
Mas o homem não é uma coisa e não pode ser definido do mesmo modo que definimos
uma coisa. Apesar disso, entretanto, o homem é frequentemente visto como uma
coisa. É descrito como um operário, um gerente de fábrica, um médico, etc. Mas
tais descrições nos dizem apenas qual é a função social de um indivíduo. Em
outras palavras: o homem é definido em termos de seu lugar na sociedade.
O homem não é uma coisa; é um ser vivo envolvido num
processo contínuo de desenvolvimento. Em cada ponto de sua vida, ele ainda não é
o que pode ser e o que ainda pode vir a ser.
Embora o homem não possa ser definido do modo que definimos
uma mesa ou um relógio, ele não foge inteiramente à definição. Podemos dizer mais
sobre ele do que não é uma coisa mas um processo vivo, O mais importante
aspecto da definição de homem é que seu pensamento pode ir muito além da
satisfação de suas necessidades físicas. Para ele, pensar não é – como para um
animal – simplesmente um meio de obtenção de bens desejados; é também um meio
de exploração da realidade do seu próprio ser e do mundo à sua volta,
independentemente de suas simpatias e antipatias. Em outras palavras: o homem não
só tem inteligência, o que os animais também possuem, mas tem ainda razão, a
qual ele pode usar para perceber a verdade. Quando o homem se deixa guiar por
sua razão, atua de acordo com os seus melhores interesses como ser intelectual
e físico.
Mas sabemos por experiência que muitas pessoas, cegas pela
cobiça e a vaidade, não atuam racionalmente em suas vidas privadas. Pior ainda,
as ações de nações são guiadas ainda menos pela razão, porque os demagogos estão
sempre a postos para fazer o cidadão esquecer que levarão sua cidade e seu
mundo à ruína se der crédito aos demagogos. Muitas nações caminharam
irremediavelmente para a destruição por não terem logrado se libertar das emoções
irracionais que estavam determinando seu comportamento e por não terem
aprendido o caminho da razão. A tarefa crucial que os profetas do Antigo
Testamento realizaram não foi, como pensa muita gente, predizer o futuro. Foi
proclamar a verdade e, assim, sugerir indiretamente quais seriam as consequências
futuras das ações presentes das pessoas.
Como o homem não é algo que possamos descrever desde fora,
por assim dizer, temos que recorrer à nossa própria experiência pessoal como
seres humanos para defini-lo. Portanto, a pergunta “Quem é homem?” obriga-nos a
indagar, “Quem sou eu?”. Se queremos evitar o erro de tratar o homem como uma
coisa, a única resposta que podemos dar à pergunta “Quem sou eu?” é: “um ser
humano”.
A maioria das pessoas nunca tomou conhecimento de sua
identidade como ser humano. Elas criam toda a espécie de imagens ilusórias de
si mesmas, suas qualidades e sua identidade. Responderão frequentemente à nossa
pergunta como “Sou professor”, “Sou operário”, “Sou médico”. Mas essa informação
sobre o trabalho de uma pessoa nada nos diz sobre essa pessoa e não contém
qualquer pista para ajudar-nos a responder à pergunta “Quem é ele?”, “Quem sou
eu?”.
Neste ponto, deparamo-nos ainda com uma outra dificuldade.
Todos temos uma certa orientação social, moral e psicológica. Quando e como sei
se uma direção que alguém tomou será sua direção permanente ou se alguma experiência
poderosa será capaz de fazê-la mudar de orientação? As pessoas atingirão um
ponto em que estão fixadas tão firmemente em seus rumos que se posa corretamente
dizer delas que são quem são e nunca mudarão? Estatisticamente pode ser possível
dizer isso de muita gente.
Mas poderemos dizê-lo a respeito de cada pessoa até o dia de
sua morte, e poderemos dizê-lo se considerarmos que talvez ela mudasse se tivesse
vivido mais tempo?
Podemos definir o homem ainda de uma outra maneira. Ele é
guiado por dois tipos de emoções e impulsos. Um tipo é de origem biológica e
basicamente o mesmo em todas as pessoas. Inclui tudo o que se enquadra nos
requisitos para a sobrevivência: a necessidade de satisfazer a fome e a sede, a
necessidade de proteção, a necessidade de alguma forma de estrutura social e,
num grau muito menor, a necessidade de realização sexual. As emoções do segundo
tipo não têm raízes na biologia e não são idênticas para todas as pessoas. Essas
emoções – como amor, alegria, solidariedade, inveja, ódio, ciúme,
competitividade, cobiça, etc. – originam-se em diferentes estruturas sociais.
No caso do ódio, temos que distinguir entre ódio reativo e endógeno.
Entendemos esses termos como paralelos à depressão reativa e
endógena. O ódio reativo é uma resposta a um ataque ou uma ameaça a nós mesmos
ou ao nosso grupo, e passa usualmente assim que o perigo passou. O ódio
endógeno é um traço de caráter. Uma pessoa cheia dessa espécie de ódio está
sempre buscando novos meios de passar ao ato, de concretizar esse ódio.
Ao invés das emoções de base biológica, as emoções
socialmente geradas que acabei de mencionar são produtos de estruturas sociais
específicas. Numa sociedade onde uma minoria exploradora domina uma maioria
indefesa e empobrecida, existe ódio de ambos os lados. É mais do que óbvio que
a maioria explorada sentirá ódio. Entretanto, o ódio da minoria dominante será
alimentado pelo medo da vingança que os oprimidos posam um dia levar a efeito.
Além disso, a minoria tem que odiar as massas a fim de sufocar seus próprios sentimentos
de culpa e justificar sua exploração. O ódio não desaparecerá enquanto faltarem
justiça e igualdade. Do mesmo modo, a verdade não prevalecerá enquanto as pessoas
tiverem que mentir para justificar suas violações dos princípios de igualdade e
justiça.
Algumas pessoas afirmam que princípios como igualdade e
justiça são ideologias que se desenvolveram no curso da história e não fazem
parte do equipamento básico, natural, do homem. Não posso dedicar-me aqui a uma
refutação desse argumento, mas quero enfatizar um ponto que fala contra ele: o
modo como as pessoas reagem se um grupo hostil viola os princípios de justiça e
igualdade demonstra que as pessoas têm, no mais profundo de seu íntimo, um
forte sentido desses valores. A sensibilidade da consciência humana em nenhuma
parte é mais evidente do que no modo como a maioria das pessoas reage até às
mais pequenas violações da justiça e da igualdade, desde que, é claro, não
sejam elas próprias as acusadas de cometer tais violações; E assim é que a consciência
encontra veemente expressão nas acusações que grupos nacionais fazem contra
seus inimigos. Se as pessoas não possuíssem sensibilidade moral natural, como seria
possível incitá-las a tão violentas paixões informando-as sobre as atrocidades
que se alega terem sido cometidas por seus inimigos?
Ainda uma outra definição de homem diz que ele é um ser em
que o governo instintivo do comportamento foi reduzido a um mínimo. O homem
reteve, obviamente, certos elementos da motivação instintiva, como em sua necessidade
de satisfazer a fome e de se reproduzir. Mas é somente quando a sobrevivência
do indivíduo ou da comunidade está em jogo que o homem é primariamente motivado
pelo instinto. A maioria dos impulsos que motivam as pessoas – ambição, inveja,
ciúme, vingança – surge e é alimentada por constelações sociais específicas. O
fato de que esses impulsos podem assumir prioridade, até mesmo sobre o instinto
de sobrevivência, demonstra até que ponto eles podem ser poderosos. As pessoas
estão frequentemente preparadas para sacrificar a vida a serviço tanto de seus
ódios e ambições quanto de seus amores e lealdades.
O mais abominável de todos os impulsos humanos, a necessidade
de usar uma outra pessoa para satisfazer os próprios fins, em virtude do
próprio poder sobre essa pessoa, pouco mais é do que uma forma refinada de
canibalismo. Esse impulso irrefreável para usar outros com vistas aos nossos
próprios fins era desconhecido nas sociedades neolíticas. Para quase todos os
que vivemos hoje é praticamente impossível imaginar que tivesse havido alguma
vez um período histórico em que os homens não queriam explorar nem eram
explorados. Mas esse tempo existiu. Nas primitivas culturas de caçadores-coletores
e agrícolas, todos tinham o suficiente para viver e seria despropositado
acumular bens. A propriedade privada não podia ainda ser investida como capital
e usada como fonte de poder.
Essa fase do pensamento humano está refletida de forma
simbólica no Antigo Testamento. Os filhos de Israel foram alimentados no deserto
com maná. Havia maná em abundância e todos podiam comer quanto quisessem, mas o
maná não podia ser armazenado. Tudo o que não fosse comido estragava-se e desaparecia
no mesmo dia. Não adiantava especular sobre se viria logo ou não mais maná. Mas
bens como cereais ou fermentas não desaparecem. Podem ser acumulados e dar
poder àqueles que possuem maior quantidade de tais bens. Somente quando os excedentes
começaram a ultrapassar um certo limite é que se tornaram vantajosos para a classe
dominante, a fim de exercer o poder sobre outras classes e obrigá-las a
executar trabalhos para os seus senhores, aceitando como seu quinhão o
estritamente mínimo necessário à existência. O triunfo do Estado patriarcal fez
dos escravos, trabalhadores e mulheres as principais vítimas da exploração.
Somente quando o homem deixar de ser um artigo de consumo
para o seu “semelhante” mais forte, poderá o nosso período canibalístico,
pré-histórico, terminar, e a nossa história verdadeiramente humana começar.
Para que se efetue tal mudança, teremos que adquirir plena consciência de até
que ponto são criminosos os nossos modos e costumes canibalísticos. Mas até a
plena consciência permanecerá ineficaz se não for acompanhada de um remorso
igualmente abrangente.
O remorso é mais do que sentirmo-nos meramente arrependidos
a respeito de algo. O remorso é uma emoção poderosa. Uma pessoa com remorsos
sente verdadeira repulsa por si mesma e pelo que fez. O remorso e a vergonha
que o acompanha são as únicas emoções humanas que podem impedir que velhos
crimes sejam repetidos continuamente. Onde não há remorso pode surgir a ilusão
de que não foram cometidos crimes. Mas onde encontramos qualquer remorso
genuíno? Os israelitas sentiram remorso pelo genocídio que perpetraram contra
as tribos de Canaã? Os americanos sentem remorso pelo extermínio quase completo
dos índios? Durante milênios o homem tem vivido num sistema que alivia o
vencedor de remorso porque equipara poder e direito. Cada um de nós deveria confessar
plenamente os crimes que nossos antepassados, nossos contemporâneos ou nós
mesmos cometemos, diretamente ou através de omissão quando deveríamos
protestar. Devemos confessar esses crimes abertamente, publicamente, em forma ritual,
por assim dizer. A Igreja católica romana oferece ao indivíduo a oportunidade de
confessar seus pecados e deixa que a voz da consciência seja ouvida. Mas a confissão
individual não é bastante, porque não envolve os crimes que são cometidos por
um grupo, uma classe, uma nação ou, de suma importância, por um Estado
soberano, o qual não está sujeito aos ditames da consciência individual.
Enquanto formos relutantes em fazer “confissões de culpa nacional”,
continuaremos adotando os nossos velhos hábitos, mantendo os olhos abertos para
os crimes dos nossos inimigos, mas permanecendo cegos para os crimes do nosso
próprio povo.
Como podem os indivíduos começar a obedecer aos ditames da
consciência de um modo sério quando nações, que professam ser guardiãs da moralidade,
agem sem consideração alguma pela consciência? O que inevitavelmente se segue é
que a voz da consciência é silenciada em cada ocasião, pois a consciência é não
menos divisível do que a verdade. Se a razão humana pretende tornar-se um guia
efetivo para as nossas ações, ela não pode ser dominada por emoções irracionais.
A inteligência continua sendo inteligência, mesmo quando devotada a fins
perversos. A razão, porém, a nossa percepção consciente da realidade tal como é
e não como gostaríamos de vê-la a fim de podermos explorá-la para os nossos
próprios fins – a razão, nesse sentido, só pode ser eficaz na medida em que
pusermos de lado as nossas emoções irracionais, isto é, na medida em que, como
seres humanos, nos tornarmos verdadeiramente humanos e os impulsos irracionais
deixarem de ser a principal força motivadora subjacente em nossas ações.
Isso leva-nos à questão seguinte: que impulsos são necessários
à sobrevivência da espécie humana? A agressão e a destrutividade podem ajudar
um grupo a erradicar um outro e assim assegurar sua própria sobrevivência, mas esses
impulsos assumem um significado diferente se os considerarmos no contexto da
humanidade como um todo. Se a agressividade se propagasse à população humana
inteira, culminaria não só na destruição de um grupo ou outro, mas, em última
instância, na erradicação de toda a espécie humana. No passado, tal pensamento
não se relacionava com a realidade e consistia meramente em especulação ociosa.
Hoje, o nosso amor à vida atingiu seu ponto mais baixo. A destruição da humanidade
como um todo é uma possibilidade concreta, porque dispomos hoje de meios de
autodestruição maciça e porque brincamos realmente com a ideia de utilizá-los.
Hoje, temos de compreender que o princípio de sobrevivência dos mais aptos – a irrestrita
vontade de poder de Estados soberanos – pode resultar na destruição da
humanidade inteira.
No século XIX, Emerson disse: “As coisas estão na sela e
cavalgam a humanidade”. Hoje podemos dizer: “O homem fez das coisas seus ídolos
e o culto desses ídolos pode destruí-lo”.
Dizem-nos repetidamente não haver limites para a
maleabilidade dos seres humanos e, à primeira vista, isso parece ser
verdadeiro. Um exame do comportamento humano através dos tempos mostra-nos não
existir praticamente nenhum ato, do mais nobre ao mais vil, de que o homem não
seja capaz e não tenha realmente realizado. Mas tese da maleabilidade dos seres
humanos sofre restrições. Qualquer comportamento que não sirva ao crescimento
de uma pessoa, ao seu progresso no sentido da autorrealização, tem seu alto
preço. O explorador teme o explorado. O homicida teme o isolamento a que suas
façanhas o condenam, mesmo que o isolamento não assuma a forma de isolamento na
prisão. O destruidor teme sua própria consciência. O consumidor sem alegria
teme viver sem estar verdadeiramente vivo.
Implícita na afirmação que o homem é infindavelmente
maleável está a possibilidade que ele possa estar vivo, do ponto de vista
fisiológico, mas mutilado num sentido humano. Tal pessoa será infeliz. Não
experimentará nenhuma alegria. Estará repleta de amargura, e a amargura a
tornará destrutiva. Somente se ela puder libertar-se desse círculo vicioso
reabrirá a possibilidade para a alegria. Se pusermos de lado condições patológicas
congênitas, podemos dizer que os seres humanos são psiquicamente saudáveis ao
nascer. Eles só se incapacitam nas mãos de outros que querem exercer total
controle sobre seus semelhantes, que odeiam a vida e que não suportam ouvir
risos de alegria. Se uma criança fica então mutilada, eles sentem-se justificados
em sua atitude hostil para com essa criança e consideram sua hostilidade uma consequência
do comportamento doentio da criança, não sua causa.
Por que quereria alguém fazer de outrem um mutilado? A
resposta a essa pergunta reside no que eu disse a respeito do canibalismo que
ainda está presente hoje em nossa sociedade. Uma pessoa psiquicamente mutilada
pode ser mais facilmente explorada por uma forte. A pessoa forte pode revidar;
a fraca não pode. Ela está à mercê das pessoas malévolas no poder. Quanto mais
um grupo dominante pode converter em mutilados psíquicos aqueles a quem domina,
mais fácil é para ele explorar seus subordinados, usando-os para promover seus
próprios fins.
Por ser o homem dotado de razão, ele pode analisar
criticamente sua experiência e discernir o que promove seu desenvolvimento e o
que o impede. Trabalha para alcançar o mais harmonioso crescimento possível de
todos os seus poderes mentais e físicos, tendo por meta final a realização do
bem-estar. O oposto do bem-estar é a depressão, como demonstrou Spinoza. Isso
sugere que a alegria é um produto da razão e a depressão é o que resulta de um
modo incorreto de vida. Isso encontra a mais clara das confirmações no Antigo
Testamento, onde é interpretado como grave pecado por parte dos israelitas que suas
vidas sejam desprovidas de alegria, ainda que vivam no meio da abundância.
Os pressupostos básicos da sociedade industrial estão em
conflito com o bem-estar humano. Quais são esses pressupostos? O primeiro pressuposto
básico é que a natureza tem de ser controlada. Mas a sociedade pré-industrial
não controlou também a natureza? É claro que sim; caso contrário, o homem já
teria morrido de fome há muito tempo. Mas o modo como controlamos a natureza na
sociedade industrial é distinto de como as sociedades agrícolas o fizeram. Isso
é particularmente verdadeiro a partir do momento em que a sociedade industrial passou
a usar a tecnologia para controlar a natureza. A tecnologia usa a capacidade de
pensar do homem para produzir coisas. É o substituto masculino do ventre
feminino. Por isso é que no começo do Antigo Testamento se descreve como Deus criou
o mundo através do Verbo. No mais antigo mito babilônico da criação, é a Grande
Mãe quem gera o mundo.
O segundo pressuposto básico da sociedade industrial é que
os seres humanos podem ser explorados por meio da força, recompensas ou – com maior
frequência – uma combinação de ambas.
O terceiro pressuposto é que a atividade econômica tem que
ser lucrativa. Na sociedade industrial, o motivo de lucro não é,
primordialmente, uma expressão de ganância pessoal, mas antes, um teste para a correção
do comportamento econômico.
Não produzimos bens para serem usados, embora a maioria dos
bens tenha que ter algum valor utilitário se quiserem ser vendáveis. Produzimos
bens para obter lucro. O resultado final de minha atividade econômica tem que
ser que ganho mais do que tenho de gastar para a produção ou aquisição de bens
comerciáveis. É um ero comum representar o motivo de lucro como um traço
psicológico pessoal, peculiar das pessoas gananciosas. O desejo de lucro pode, é
claro, ser apenas isso, mas tal noção do motivo de lucro não caracteriza a
norma típica numa sociedade industrial moderna. O lucro é simplesmente uma
prova de comportamento econômico correto e, por conseguinte, um critério para a
competência nos negócios.
Um quarto traço, que é uma característica clássica das
sociedades industriais, é a competição. A história mostrou, porém, que como
resultado da crescente centralização e das dimensões de algumas empresas – e como
resultado, também, da ilegal mas, não obstante, praticada fixação de preços – a
competição entre grandes companhias deu lugar à cooperação. Onde existe
competição, é mais provável que ocorra entre duas pequenas lojas de varejo do
que entre grandes organizações industriais. Em toda a nossa moderna ordem
econômica, inexistem vínculos emocionais entre vendedor e comprador. Em épocas
antigas, havia uma relação especial entre um comerciante e seu freguês. O comerciante
estava interessado em seu freguês e a venda era mais do que uma transação financeira.
O negociante sentia uma certa satisfação em vender à sua clientela um artigo que
era útil e atraente. Isso ainda acontece hoje, é claro, mas é a exceção e está
limitado principalmente a pequenas lojas de um tipo antiquado. Numa dispendiosa
loja de departamentos, os vendedores sorriem polidamente. De um modo vulgar,
põem os olhos indiferentemente no espaço. Não precisaria assinalar que o sorriso
na loja cara é falso e faz parte das despesas gerais refletidas nos preços mais
elevados.
O quinto ponto que quero mencionar é que a capacidade de
simpatia reduziu-se muito no nosso século. E deveria talvez acrescentar que a
capacidade de sofrimento encolheu com ela. Não quero dizer com isso, é claro,
que as pessoas sofrem hoje menos do que era costume. Mas encontram-se tão
alienadas de si mesmas que já não possuem plena consciência de seu sofrimento.
Tal como alguém com uma dor física crônica, elas acabam aceitando seu
sofrimento como um dado normal e só o percebem quando ele aumenta além de sua
intensidade usual. Mas não deveríamos esquecer que o sofrimento é a única
emoção que parece ser verdadeiramente comum a todos os seres humanos, na verdade,
talvez, a todos os seres sencientes. Por essa razão, uma pessoa sofredora que reconhece
até que ponto o sofrimento é generalizado pode sentir o consolo da solidariedade
humana.
Existem muitas, inúmeras, pessoas que nunca conheceram a
felicidade. Mas não existe uma só que nunca tenha sofrido, por mais
obstinadamente que tenha lutado para reprimir sua própria consciência do
sofrimento. A simpatia é inseparável do amor à humanidade. Onde não há amor não
pode haver simpatia nem compaixão. A indiferença é o oposto da compaixão e podemos
descrever a indiferença como um estado patológico com tendências esquizóides. O
que passa por ser amor por um outro individuo prova, com frequência, não ser
mais do que dependência dessa pessoa. Quem ama somente uma pessoa não ama
realmente ninguém.
* FROMM, Erich. Do amor à vida. Palestras
radiofônicas organizadas por Hansd Jürgen Schultz. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
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