Credo de um humanista*
Erich Fromm
- Creio que a unidade do ser humano resulte do fato de o
homem ser uma vida autoconsciente. Nisso ele se distingue dos outros seres
vivos. O ser humano é consciente de si mesmo: do seu futuro (isto é, do fato que
irá morrer), da sua pequenez e impotência, ele percebe os outros enquanto
outros, vive na natureza e está submetido às suas leis, mesmo transcendendo-a
nos seus pensamentos.
- Creio que o ser humano é resultado de uma evolução natural
proveniente do conflito de ser ligado à natureza e igualmente separado dela, e
da necessidade de encontrar união e harmonia com a natureza.
- Creio que a natureza do ser humano, abarcada naquela
contradição que está enraizada nas condições da existência humana e faz a busca
de soluções necessárias, que, por sua vez, produz novas contradições e a
necessidade de novas respostas.
- Creio que cada resposta dada às contradições cumpra seu
pressuposto ao ajudar o ser humano a superar sua sensação de separação e de
alcançar uma sensibilidade de aceitação, de união e de ligação a alguém.
- Creio que o ser humano tem, em cada resposta dada a essas
contradições, a opção entre avançar ou retroceder. Essas opções, que se
manifestam em determinadas ações, são os caminhos pelos quais regredimos ou
progredimos enquanto seres humanos.
- Creio que o ser humano tem, fundamentalmente, a opção
entre a vida e a morte; entre criatividade e violência destrutiva; entre bom
senso realista e ilusão; entre objetividade e intolerância; e entre uma
independência fraterna e uma relação à base de domínio e submissão.
- Creio que se pode atribuir à vida o significado de um
nascimento permanente e de um desenvolvimento constante.
- Creio que podemos atribuir à morte o significado do fim do
crescimento e da reiteração permanente.
- Creio que o ser humano que der uma resposta regressiva
procura alcançar a unidade, libertando-se do medo insuportável da solidão e
incerteza, desfigurando aquilo que o torna humano e o atormenta. A orientação
regressiva desenvolve-se em três modalidades, que podem se manifestar
separadamente ou em conjunto: na necrofilia, no narcisismo e na simbiose incestuosa.
Entendo como necrofilia o amor a tudo que tem a ver com violência e destrutividade;
a vontade de matar; a admiração pelo poder, a atração por coisas mortas, pelo
suicídio, pelo sadismo; a vontade de transformar o orgânico por meio de “ordem”
em algo anorgânico. Como faltam ao necrófilo as qualidades necessárias para
algo criativo, destruir é para ele, em sua incapacidade, fácil, pois tudo gira
em torno da violência.
Entendo como narcisismo que o ser humano perde o interesse
vivo pelo mundo exterior e mostra um intenso apego a si mesmo, seu próprio
grupo, seu clã, sua religião, nação, raça etc. Isso leva a graves distorções em
sua capacidade racional de discernimento. Geralmente surge a necessidade de
satisfação narcisista a fim de compensar a pobreza material ou cultural. Entendo
como simbiose incestuosa a tendência de continuar ligado à mãe e suas substitutas
– o sangue, a família, a tribo – para poder fugir do fardo insuportável da responsabilidade,
da liberdade e da consciência e receber proteção e amor num refúgio de
segurança e dependência. Cada um para por isso com o fim/a estagnação do seu
desenvolvimento pessoal.
- Creio que o ser humano que opta pelo progredir encontrará
uma nova unidade, na qual ele levará todas as suas capacidades humanas ao pleno
desenvolvimento. Elas podem se desenvolver e se manifestar separadamente ou em
conjunto: na biofilia, no amor a humanidade e a natureza, e em independência e
liberdade.
- Creio que o amor seja a chave-mestra pela qual podem ser
abertos os portões para o crescimento do ser humano. Entendo isso como ‘amor a
...” e estar unido com...’ algum outro ou alguma coisa fora de si mesmo,
conquanto significa estar unido estar relacionado com outros e se sentir unido
a eles, sem precisar diminuir a sensibilidade pela própria integridade e
independência. Amor é uma orientação produtiva, em cuja essência estão
presentes, simultaneamente, os seguintes aspectos: temos que nos interessar por
aquele com quem queremos estar unidos, sentir-nos responsáveis por ele,
respeitá-lo e entendê-lo.
- Creio que a realização do amor seja a atividade mais
humana e humanizadora que é dado ao homem para a alegria de viver. Mas, para
esta realização, vale o mesmo para a capacidade do discernimento: ele perde o
sentido se for cumprida só pela metade.
- Creio que precisamos estar “livres de “nossos laços internos e/ou externos a fim de que possamos estar “livres para” algo: um fazer criativo, “poietikón”, para mais conhecimento e consciência etc. Só nestas condições somos capazes de ser livres, atuantes e responsáveis.
- Creio que a liberdade seja a capacidade de seguir a voz do
discernimento e do conhecimento e de resistir às vozes de paixões irracionais.
Ela é a emancipação que liberta o ser humano e nivela caminho para ele fazer
uso das suas faculdades de discernimento, entender o mundo em sua objetividade
e reconhecer o papel que representa nele.
- Creio que a “luta pela libertação” geralmente tem o
significado principal de se opor às autoridades que nos foram impostas e cuja
finalidade era quebrar a vontade de cada um. Hoje, a “luta pela libertação”
deveria significar que nos libertamos, individual e coletivamente, daquela
autoridade a qual nos submetíamos “voluntariamente”. Deveríamos nos libertar
daquelas forças internas que nos coagem a esta submissão ao tornar-nos
incapazes de suportar a liberdade.
- Creio que a liberdade não seja uma constante qualidade
essencial que possuímos ou não. Provavelmente ela existe apenas no ato da nossa
autolibertação, quando fazemos uso da nossa liberdade de optar. Cada passo na
vida que aumenta o grau da maturidade do ser humano aumenta igualmente a
capacidade de optar pela alternativa libertadora.
- Creio que a “liberdade de escolha” não seja dada a todos
os seres humanos em cada momento de maneira igual. Quem é exclusivamente
necrófilo, narcisista ou simbiótico-incestuoso tem apenas uma única “opção” de
se decidir pela regressão. O homem livre, liberto de todas as ligações
irracionais, não pode fazer uma opção regressiva.
- Creio que o problema da liberdade de escolha exista só em
pessoas com orientações opostas, e que essa escolha esteja condicionada
fortemente por desejos inconscientes e racionalizações atenuantes.
- Creio que ninguém possa “redimir” o próximo ao tomar
decisões em seu lugar. O único auxílio consta em indicar com sinceridade e
amor, sem sentimentalismo ou ilusões, as possíveis alternativas. A
conscientização cognoscível das alternativas libertadoras pode despertar no ser
humano todas as suas energias escondidas e encaminhá-lo para optar pela vida em
vez da morte.
- Creio que o ser humano pode sentir a igualdade de todos os
homens quando ele tenta conhecer a si mesmo por completo e percebe que é
semelhante ao outro e se identifica com ele. Todo ser humano carrega dentro de
si toda a humanidade. A conditio humana é una, igual para todos os seres humanos,
apesar das intransponíveis diferenças em relação à inteligência, aptidão,
estatura, cor etc.
- Creio ser necessário lembrar a igualdade de todos os seres
humanos, porque temos que acabar com essa atitude de tornar uma pessoa o
instrumento da outra.
- Creio que a fraternidade seja o amor dirigido ao próximo.
Ela permanece uma palavra vazia enquanto não forem extintas todas as fixações
incestuosas que inibem o ser humano em julgar sobre o “irmão” de maneira
objetiva.
- Creio que cada um não pode entrar em contato estreito com
a humanidade dentro de si enquanto não começar a transcender sua sociedade e a
reconhecer de que maneira ela favorece ou inibe o desenvolvimento do seu
potencial humano. Se ao ser humano resultam como “naturais” as proibições, as
restrições e as deturpações dos valores, é sinal de que ele ainda não alcançou
o verdadeiro conhecimento da natureza humana.
- Creio que a sociedade em sua função estimulante e
igualmente inibidora sempre esteve em conflito como nossa natureza humana. A
sociedade não deixará de paralisar o ser humano e promover a dominação até que
sua finalidade coincida com a natureza humana.
- Creio que podemos e devemos esperar por uma sociedade sadia e sensata? Tal sociedade encorajará a capacidade do ser humano ao amor ao próximo, ao trabalho, à criatividade, ao desenvolvimento da sua racionalidade e a uma autopercepção objetivamente correta, que se fundamenta na experiência da própria energia produtiva.
- Creio que uma larga faixa da população possa e deva
esperar a recuperação da sua saúde psíquica. Ela está marcada pela capacidade
de amar e de criar, pela libertação dos laços incestuosas ao clã e a terra,
pelo experienciar da identidade na qual cada um se sente como sujeito e
executor das suas próprias forças, pela capacidade de se deixar tocar pela
realidade interna e externa e de realizar o desenvolvimento de objetividade de
discernimento.
- Creio que na medida em que nosso mundo parece se tornar
louco e desumano, um número cada vez maior de pessoas sentirá a necessidade de
se unir e de colaborar com outros que compartilham suas preocupações. [133]
- Creio que as pessoas de boa vontade não deveriam apenas
chegar a uma interpretação humana do mundo, mas deveriam igualmente indicar o
caminho para isso e trabalhar para uma possível modificação. Uma interpretação
sem a vontade de mudar é inútil, uma modificação sem interpretação prévia é
cega.
- Creio na realização de um mundo em que seja possível para
o ser humano ser muito, mesmo quando possui pouco; no qual o motivo
predominante da sua vida não seja o consumo; no qual o ser humano é a primeira
e última finalidade; no qual o ser humano pode encontrar um caminho de dar um
sentido à sua vida e no qual ele encontra a força necessária para uma vida
livre e sem ilusões.
* Credo de um humanista, in: RALPH R. Gniss (org.). Mudar
a Educação a partir do Pensamento de Erich Fromm. Goiânia: Kelps, 2011, pp.
129-133. Tradução de Ralph R. Gniss.
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