segunda-feira, 28 de outubro de 2019

ABAIXO A MORTE! Por qual motivo a opinião pública norte-americana, em sua maioria, se mostra indiferente à tragédia vietnamita?



ABAIXO A MORTE!
Por qual motivo a opinião pública norte-americana, em sua maioria, se mostra indiferente à tragédia vietnamita?

Erich Fromm
(Trecho de uma palestra que o famoso psicanalista, filósofo e escritor pronunciou no Madison Square Garden, em novembro de 1966. Transcrito da revista norte-americana Fellowship, número de março, 1967)

                Os defensores da guerra que os Estados Unidos desenvolvem no Vietnã afirmam que nossas tropas estão lutando lá para garantir a liberdade. Como muitos de meus compatriotas, considero totalmente ilusória essa premissa, mas não pretendo perder tempo, aqui e agora, com a discussão desse problema. O que desejo é chamar a atenção dos que me ouvem para um ponto que me parece da mais alta relevância: mesmo que fosse verdadeira a noção que nossa atividade militar no Vietnã estivesse ajudando o povo sul-vietnamita tornar-se livre, não estaremos prejudicando ao longo do processo, - prejudicando a nós mesmos e a toda a humanidade – de maneira infinitamente superior ao bem que acreditamos estar praticando?
            Não me refiro especificamente ao perigo cada vez maior de que o conflito vietnamita se transforme num holocausto nuclear. Refiro-me à indiferença crescente que vimos demonstrando, ano após anos desde a Primeira Guerra Mundial, à vida e à brutalização do homem. Naquela guerra, tremendas batalhas foram travadas sem que se levasse em conta a perde de vidas humanas em cada lado: em áreas restritas, no curso de alguns dias, dezenas ou mesmo centenas de milhares de soldados foram mortos. Lembremo-nos de Verdun. As forças em conflito também se julgavam defensoras da liberdade, embora estivessem lutando por conquistas territoriais, matérias-primas e prestígio.
            Depois de tanta carnificina, a humanidade ficou como que preparada para aceitar sem protesto novos horrores: os horrores dos campos de concentração da Alemanha nazista, dos campos de trabalho forçado criados por Stálin, a aniquilação de muitos milhões de homens cuja única falha eram serem indefesos. Acostumada pouco a pouco a essas brutalidades maciças, por que é que a humanidade haveria de protestar contra a primeira destruição, por bombardeio aéreo, de uma pequena aldeia? Refiro-me à destruição da cidadezinha de Guernica por aviões alemães, durante a Guerra Civil Espanhola. Quando a Segunda Guerra Mundial começou pouco restava daquela força interior, que o homem chama de consciência, cujo sentido é um protesto inerente contra a estúpida destruição da vida.
            Feita a primeira experiência, os alemães passaram à destruição sistemática de cidades inteiras, como Varsóvia, Amsterdã, Coventry. Os aliados reagiram da mesma forma, eliminando mais de 100.000 homens, mulheres e crianças, numa só noite, queimados vivos em Dresden, cidade que não constituía de maneira alguma um objetivo militar. E vieram depois as bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasaki.
            Inaugurada a era nuclear em terreno bélico, quantos chefes de estado, das grandes potências – homens que em suas vidas privadas podem ser tão dignos e decentes como qualquer ser humano -, não se prepararam para a possibilidade de uma guerra atômica, uma guerra que destruirá a civilização e talvez a própria vida sobre a face da Terra? É verdade que esperam não ter que utilizar armas atômicas, mas estarão prontos a fazê-lo para defender os objetivos políticos que considerem legítimos.
            Como poderemos entender isso? Será possível que no momento exato em que a humanidade se encontra no limiar de fabulosas realizações, há tantos séculos desejadas, tenhamos diante de nós uma tremenda indiferença à destruição generalizada?
            Creio que a origem desse paradoxo se encontra, como já disse, no fato de que tanto o amor e o respeito pela vida humana quanto nosso protesto moral contra a destruição tenham enfraquecido paulatinamente, dia após dia, ano após ano, desde 1914. A guerra no Vietnã talvez seja o último elo nesse processo contínuo de nossa insensibilização progressiva, de nossa indiferença, à vida e à destruição. Nossos soldados, no Vietnã, estão matando, mutilando e queimando muito mais civis indefesos – homens, mulheres e crianças – do que inimigos armados.
            Viramos as costas diante das torturas aplicadas a prisioneiros de guerra pelos soldados do Vietnã do Sul. Bombardeamos diariamente o pequeno país do sudeste asiático com a explícita intenção de derrotá-lo por meio do terrível sofrimento imposto a seu povo. Ora, esse princípio em nada difere da aplicação de torturas na idade Média e não tem qualquer fundamento nas regras militares. Nossos boletins de guerra não se referem mais, como era feito em conflitos anteriores, a territórios conquistados, mas ao número de inimigos mortos numa dada operação. E lemos essas estatísticas macabras ao tomar o café da manhã ou na condução que nos leva ao trabalho.
            A continuar esse estado de coisas, o último traço de consciência em breve terá sido removido da condição humana e substituído pelo embrutecimento universal.
            Não creio ser necessário recordar-lhes que a supressão de impulsos destrutivos tem sido, ao longo de milênios, o objetivo principal de todas as religiões, tanto do cristianismo quanto do judaísmo ou do budismo. Será necessário recordar-lhes que a essência de todas essas religiões pode ser resumida na frase de que o homem deve escolher a vida, não a morte? Que a forma básica de todo comportamento ético é a reverência pela vida, como a praticou Albert Schweitzer?
            Deverei lembrar-lhes que esse princípio fundamental não se encontra apenas nas grandes religiões, mas também em toda a filosofia humanista e na origem mesma do sistema democrático, que se manifesta na proteção da vida de cada ser humano, mesmo na dos criminosos? O que nos ameaça, hoje, não é apenas o perigo de que um holocausto atômico destrua a civilização, mas o fato de que a estamos destruindo antes dele. A humanidade enfrenta o risco imediato de ver estraçalhada sua contextura moral, pois a essência dessa qualidade é exatamente o amor pela vida e por tudo o que é vivo, assim como o repúdio à terrível perversão representada pelo amor ao que é morto e putrefato, pelo culto da violência como instrumento de convicção.
            O anseio de liberdade, a exigência de liberdade, são sentimentos profundos de todo ser humano. Se não formos capazes de entender isso, estaremos danificando a nós mesmos. No entanto, mesmo se soubermos escolher entre vida e destruição. Se a indiferença à vida e à destruição tomar conta de nós, então estaremos completamente perdidos, pois nenhuma liberdade nos restará senão a de nos transformarmos em aves de rapina, em bestas-feras.
            Antes de 1914, depois de um século de paz, a humanidade subestimou a maldade em potencial que existe no homem, bem como a atração que sobre ele exercem a morte e a destruição. Tanto assim que um dos maiores psicólogos de todos os tempos, Freud, chegou a concluir que o instinto sexual era o mais temido e reprimido. Depois da Primeira Guerra Mundial, porém, Freud começou a reconhecer a força da destrutividade e a formulou em sua conceituação do instinto da morte.
            Ainda nos agarramos hoje, contudo, à versão otimista do século passado. Se abrirmos os olhos, constataremos que nossa consciência, com sua função de protesto contra o potencial destruidor que temos dentro de nós, está cada vez mais fraca. E, mais do que isso, que numa sociedade industrial e burocrática estamos nos transformando em objetos que manipulam outras pessoas como se fossem também objetos; deixamos progressivamente de amar a vida e passamos a adorar o princípio da organização e as quinquilharias que esta sociedade produz. O perigo maior que enfrentamos não é o de nos transformarmos em seres cruéis, mas em pessoas tornadas insensíveis e indiferentes à vida pela idolatria do que é mecânico, tecnocrático e morto.
            Sejam quais forem os erros e acertos da guerra do Vietnã, tomo posição ao lado de todos aqueles que, com base em nossas tradições religiosas e humanísticas, estejam bradando: Abaixo a Morte! Ou paramos com a matança, imediatamente, ou perderemos para todo o sempre a capacidade de conter o fluxo de morte e destruição.
            Não nos iludamos em pensar que nossa tragédia emana do que está acontecendo hoje no sudeste asiático. Vivemo-la aqui mesmo, dentro de casa, com a violência crescente em torno de nós: assassinatos brutais, a fúria destrutiva da delinquência juvenil. Como poderemos esperar que as novas gerações amem a vida, se são testemunhas de violência diária, consentida pelos mais velhos? O único meio de conter a onda de violência é o de nos tornarmos outra vez amantes da vida. Seja qual for nosso credo religioso, seja qual for nossa convicção ideológica, todos os que, entre nós, se preocupam com a recuperação do homem não devem perder tempo em discutir se Deus está morto ou não, se democracia é assim ou assado, mas dedicar-se à luta para que o homem e sua consciência não sucumbam no processo de brutalização a que estão submetidas. Temos de evitar a todo custo que nos transformemos numa nação de Eichmanns, para quem ordem e organização sejam valores mais altos do que a vida e o progresso.
(Tradução Ênio Silveira)

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