ABAIXO A MORTE!
Por qual motivo a
opinião pública norte-americana, em sua maioria, se mostra indiferente à
tragédia vietnamita?
Erich Fromm
(Trecho de
uma palestra que o famoso psicanalista, filósofo e escritor pronunciou no
Madison Square Garden, em novembro de 1966. Transcrito da revista
norte-americana Fellowship, número de março, 1967)
Os
defensores da guerra que os Estados Unidos desenvolvem no Vietnã afirmam que
nossas tropas estão lutando lá para garantir a liberdade. Como muitos de meus
compatriotas, considero totalmente ilusória essa premissa, mas não pretendo
perder tempo, aqui e agora, com a discussão desse problema. O que desejo é
chamar a atenção dos que me ouvem para um ponto que me parece da mais alta
relevância: mesmo que fosse verdadeira a noção que nossa atividade militar no
Vietnã estivesse ajudando o povo sul-vietnamita tornar-se livre, não estaremos
prejudicando ao longo do processo, - prejudicando a nós mesmos e a toda a
humanidade – de maneira infinitamente superior ao bem que acreditamos estar
praticando?
Não me
refiro especificamente ao perigo cada vez maior de que o conflito vietnamita se
transforme num holocausto nuclear. Refiro-me à indiferença crescente que vimos
demonstrando, ano após anos desde a Primeira Guerra Mundial, à vida e à
brutalização do homem. Naquela guerra, tremendas batalhas foram travadas sem
que se levasse em conta a perde de vidas humanas em cada lado: em áreas
restritas, no curso de alguns dias, dezenas ou mesmo centenas de milhares de
soldados foram mortos. Lembremo-nos de Verdun. As forças em conflito também se
julgavam defensoras da liberdade, embora estivessem lutando por conquistas
territoriais, matérias-primas e prestígio.
Depois de
tanta carnificina, a humanidade ficou como que preparada para aceitar sem
protesto novos horrores: os horrores dos campos de concentração da Alemanha
nazista, dos campos de trabalho forçado criados por Stálin, a aniquilação de
muitos milhões de homens cuja única falha eram serem indefesos. Acostumada
pouco a pouco a essas brutalidades maciças, por que é que a humanidade haveria
de protestar contra a primeira destruição, por bombardeio aéreo, de uma pequena
aldeia? Refiro-me à destruição da cidadezinha de Guernica por aviões alemães,
durante a Guerra Civil Espanhola. Quando a Segunda Guerra Mundial começou pouco
restava daquela força interior, que o homem chama de consciência, cujo
sentido é um protesto inerente contra a estúpida destruição da vida.
Feita a
primeira experiência, os alemães passaram à destruição sistemática de cidades
inteiras, como Varsóvia, Amsterdã, Coventry. Os aliados reagiram da mesma
forma, eliminando mais de 100.000 homens, mulheres e crianças, numa só noite,
queimados vivos em Dresden, cidade que não constituía de maneira alguma um
objetivo militar. E vieram depois as bombas atômicas sobre Hiroxima e Nagasaki.
Inaugurada
a era nuclear em terreno bélico, quantos chefes de estado, das grandes
potências – homens que em suas vidas privadas podem ser tão dignos e decentes
como qualquer ser humano -, não se prepararam para a possibilidade de uma
guerra atômica, uma guerra que destruirá a civilização e talvez a própria vida
sobre a face da Terra? É verdade que esperam não ter que utilizar armas
atômicas, mas estarão prontos a fazê-lo para defender os objetivos políticos
que considerem legítimos.
Como
poderemos entender isso? Será possível que no momento exato em que a humanidade
se encontra no limiar de fabulosas realizações, há tantos séculos desejadas,
tenhamos diante de nós uma tremenda indiferença à destruição generalizada?
Creio que a
origem desse paradoxo se encontra, como já disse, no fato de que tanto o amor e
o respeito pela vida humana quanto nosso protesto moral contra a destruição
tenham enfraquecido paulatinamente, dia após dia, ano após ano, desde 1914. A
guerra no Vietnã talvez seja o último elo nesse processo contínuo de nossa
insensibilização progressiva, de nossa indiferença, à vida e à destruição.
Nossos soldados, no Vietnã, estão matando, mutilando e queimando muito mais
civis indefesos – homens, mulheres e crianças – do que inimigos armados.
Viramos as
costas diante das torturas aplicadas a prisioneiros de guerra pelos soldados do
Vietnã do Sul. Bombardeamos diariamente o pequeno país do sudeste asiático com
a explícita intenção de derrotá-lo por meio do terrível sofrimento imposto a
seu povo. Ora, esse princípio em nada difere da aplicação de torturas na idade
Média e não tem qualquer fundamento nas regras militares. Nossos boletins de
guerra não se referem mais, como era feito em conflitos anteriores, a
territórios conquistados, mas ao número de inimigos mortos numa dada operação.
E lemos essas estatísticas macabras ao tomar o café da manhã ou na condução que
nos leva ao trabalho.
A continuar
esse estado de coisas, o último traço de consciência em breve terá sido
removido da condição humana e substituído pelo embrutecimento universal.
Não creio
ser necessário recordar-lhes que a supressão de impulsos destrutivos tem sido,
ao longo de milênios, o objetivo principal de todas as religiões, tanto do
cristianismo quanto do judaísmo ou do budismo. Será necessário recordar-lhes
que a essência de todas essas religiões pode ser resumida na frase de que o
homem deve escolher a vida, não a morte? Que a forma básica de todo
comportamento ético é a reverência pela vida, como a praticou Albert
Schweitzer?
Deverei
lembrar-lhes que esse princípio fundamental não se encontra apenas nas grandes
religiões, mas também em toda a filosofia humanista e na origem mesma do
sistema democrático, que se manifesta na proteção da vida de cada ser humano,
mesmo na dos criminosos? O que nos ameaça, hoje, não é apenas o perigo de que
um holocausto atômico destrua a civilização, mas o fato de que a estamos
destruindo antes dele. A humanidade enfrenta o risco imediato de ver
estraçalhada sua contextura moral, pois a essência dessa qualidade é exatamente
o amor pela vida e por tudo o que é vivo, assim como o repúdio à terrível
perversão representada pelo amor ao que é morto e putrefato, pelo culto da
violência como instrumento de convicção.
O anseio de
liberdade, a exigência de liberdade, são sentimentos profundos de todo ser
humano. Se não formos capazes de entender isso, estaremos danificando a nós
mesmos. No entanto, mesmo se soubermos escolher entre vida e destruição. Se a
indiferença à vida e à destruição tomar conta de nós, então estaremos
completamente perdidos, pois nenhuma liberdade nos restará senão a de nos
transformarmos em aves de rapina, em bestas-feras.
Antes de
1914, depois de um século de paz, a humanidade subestimou a maldade em
potencial que existe no homem, bem como a atração que sobre ele exercem a morte
e a destruição. Tanto assim que um dos maiores psicólogos de todos os tempos,
Freud, chegou a concluir que o instinto sexual era o mais temido e reprimido.
Depois da Primeira Guerra Mundial, porém, Freud começou a reconhecer a força da
destrutividade e a formulou em sua conceituação do instinto da morte.
Ainda nos
agarramos hoje, contudo, à versão otimista do século passado. Se abrirmos os
olhos, constataremos que nossa consciência, com sua função de protesto contra o
potencial destruidor que temos dentro de nós, está cada vez mais fraca. E, mais
do que isso, que numa sociedade industrial e burocrática estamos nos
transformando em objetos que manipulam outras pessoas como se fossem também
objetos; deixamos progressivamente de amar a vida e passamos a adorar o
princípio da organização e as quinquilharias que esta sociedade produz. O
perigo maior que enfrentamos não é o de nos transformarmos em seres cruéis, mas
em pessoas tornadas insensíveis e indiferentes à vida pela idolatria do que é
mecânico, tecnocrático e morto.
Sejam quais
forem os erros e acertos da guerra do Vietnã, tomo posição ao lado de todos
aqueles que, com base em nossas tradições religiosas e humanísticas, estejam
bradando: Abaixo a Morte! Ou paramos com a matança, imediatamente, ou
perderemos para todo o sempre a capacidade de conter o fluxo de morte e
destruição.
Não nos
iludamos em pensar que nossa tragédia emana do que está acontecendo hoje no
sudeste asiático. Vivemo-la aqui mesmo, dentro de casa, com a violência
crescente em torno de nós: assassinatos brutais, a fúria destrutiva da
delinquência juvenil. Como poderemos esperar que as novas gerações amem a vida,
se são testemunhas de violência diária, consentida pelos mais velhos? O único
meio de conter a onda de violência é o de nos tornarmos outra vez amantes da
vida. Seja qual for nosso credo religioso, seja qual for nossa convicção
ideológica, todos os que, entre nós, se preocupam com a recuperação do homem
não devem perder tempo em discutir se Deus está morto ou não, se democracia é
assim ou assado, mas dedicar-se à luta para que o homem e sua consciência não
sucumbam no processo de brutalização a que estão submetidas. Temos de evitar a
todo custo que nos transformemos numa nação de Eichmanns, para quem ordem e
organização sejam valores mais altos do que a vida e o progresso.
(Tradução Ênio
Silveira)
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